Uma parede da casa havia tombado, deixando seus dois andares expostos como um dente cariado, sem ninguém entre os escombros.
Se eu fosse um daqueles autores importantes que têm um agente a quem pedir conselhos, certamente eu ouviria que começar uma coluna de crônicas em plena pandemia não é uma boa ideia.
– Diego, – Ele me diria tomando ar para não me mandar a merda – você está trancado dentro de casa a mais de quarenta dias, com o mínimo contato com a humanidade, as pessoas vão se cansar de você falar sobre as suas cachorras.
Ele estaria evidentemente correto (exceto pela parte das minhas cachorras, duvido que alguém um dia iria se cansar de me ouvir falar sobre elas), mas eu me levantaria e apontaria o dedo na cara dele, em tom absolutamente indignado.
– Foda-se o que você acha, seu agente literário imaginário. É justamente em um momento como esse que as pessoas precisam de arte. “Em tempos sombrios a arte…
– … é o único farol”. Sei sei. Eu vi no seu catarse. A propósito, quando você vai depositar minha parte do pagamento dos seus cinco apoiadores?
Maldito sanguessuga imaginário! Ele vai ver!
Só que em algum ponto ele está certo. Existe pouco a destrinchar de onde estou. Poderia falar sobre o transito que vejo da janela, fazer uma previsão do tempo, ou dar dicas pouco saudáveis para o almoço, mas seria difícil escrever uma crônica a partir disso. A boa crônica nasce das sutilezas do cotidiano e ultimamente nosso cotidiano pode ser qualquer coisa, menos sutil.
Então de onde veio essa ideia? Porquê essa invenção de uma coluna de crônicas? Acontece que semana passada eu encontrei um cachorro.
Atravessava a rua meio atabalhoado, naquele jeito de cachorro perdido, a língua entre os dentes e as orelhas alertas. Era cedo. Fazia frio. Eu podia terminar a volta com as minhas duas demônias e voltar para a minha quarentena, mas o focinho daquele desgraçado iria me atormentar o resto do dia, então eu o lacei com uma guia e o segurei tempo o suficiente para ver a plaquinha em seu pescoço. Seu nome era Marley e ele tinha dois telefones para contato.
Já resgatei cachorros perdidos antes. Não é algo comum, eu não tenho espaço para outro animal e as garotas são ciumentas aqui em casa. Das outras vezes dei sorte e encontrei o dono desesperado com a guia na mão, agradecendo por eu ter encontrado o fujão. Olhei ao redor esperando que a cena se repetisse, não havia ninguém procurando pelo Marley. Minhas cachorras não o mataram (elas são pequenas, mas são ferozes) e eu achei que se desse a volta no quarteirão, o dono logo apareceria. O que, é claro, não aconteceu.
Era um dia de merda, numa semana de merda, em um mês de merda, em um ano de… bom, vocês entenderam. Devolver o cachorro de alguém não tinha nada de altruísta. Era uma necessidade bastante egoísta de me sentir bem com algo. Na minha cabeça de salvador branco da classe média, imaginei uma criança agarrada ao pescoço do cachorro, um idoso com balão de oxigênio em prantos, um paciente terminal que na primeira fungada de Marley se levantasse do reino dos mortos pelo poder do amor. Qualquer bosta que me fizesse sentir minimamente útil e esquecer do apocalipse zumbi que acontecia ao meu redor. Vocês conhecem a sensação. É a mesma egotrip de quando vocês dão dinheiro para o morador de rua e depois vão se vangloriar no twitter. Enfim. Devolver o Marley ao seu dono seria aquele gesto altruísta de merda que a gente faz uma vez ao ano para fingir que não é tão bosta quanto o resto da humanidade.
Sem seu dono a vista, apesar do horário, resolvi que a única solução era telefonar para os números da plaquinha. Era cedo o suficiente para você não saber se dá boa noite ou bom dia, mas se alguém encontrar meu cachorro perdido, pode me ligar as 2 horas da manhã que eu vou busca-la de pijama, então achei que não seria incômodo e é claro que, como tudo nessa história, eu me enganei novamente.
– Hello, Good morning! – Uma voz empastada de sono disse do outro lado, me pegando desprevenido. Sei lá vocês, mas eu levo alguns segundos para carregar a fita de inglês no cérebro e ela segue emperrando ao longo de uma conversa.
– Gudi Mornim! – Respondi com a desenvoltura do quase-embaixador Eduardo Bolsonaro. – Ai ravi ior dog.
– What?
– Ior Losti Dog? Marley? Ai faundi rim.
– I don’t have a fucking dog.
O telefone ficou mudo enquanto eu ainda estava analisando quantos erros gramaticais tinha cometido na curta conversa, mas algo me dizia que o cachorro não era dele. Conferi o número para ver se tinha algo errado além do meu verbo to be, mas pela primeira vez naquele dia eu tinha feito algo correto. Ou o número estava desatualizado, ou o gringo filho da puta tinha abandonado o cachorro na rua. A raiva só não era maior do que o medo que senti de não saber o que fazer com o Marley, então resolvi arriscar ligar para o segundo número, torcendo para alguém me atender em português.
Levou um tempo para conseguir falar com alguém. Eu já tinha terminado o passeio com as meninas e tinha trancado Marley no banheiro do apartamento, enquanto pensava em como convencer meu pai a ficar com um cachorro de trinta quilos que tinha pouco mais de um ano de idade. Naqueles dois minutos que ele ficou solto no meu pequeno apartamento de solteiro Marley já tinha pulado na minha cama, levantado a perna para o sofá, derramado toda água do potinho das meninas e babado no tapete, e mesmo assim eu estava pensando que talvez pudesse ficar com ele.
Foi quando o telefone tocou e alguém respondeu as minhas insistentes ligações. Alguém ficaria feliz em ouvir que eu tinha achado seu cachorro. Bolsonaro renunciaria, o dólar cairia para R$1,65, eu conseguiria um emprego, a gerente do banco ligaria para perguntar onde eu queria investir os cinquenta mil reais que tinham sido depositados na minha conta e o Jornal Nacional anunciaria a paz na terra para os homens de boa vontade.
Só que não.
Marley pertencia a uma família em situação de risco. Seu dono se chamava Lagoa e vivia em uma ocupação que ficava a dois quilômetros de casa. No telefone, a voz sonolenta de uma mulher agradecia a minha ajuda, mas ela não era a dona do Marley. Era só um telefone de recados, para ele encontrar o caminho de casa se por acaso se perdesse. Dois quilômetros não é muito. Eu tinha a manhã livre e francamente queria que aquela confusão chegasse ao fim logo. Peguei o endereço, coloquei de volta a minha máscara de pandemia, tirei o Marley do banheiro e torci para não terminar em algum episódio sinistro de walking dead.
Foi engraçado ver pelo caminho algumas pessoas cumprimentando o Marley, o que facilitou encontrar o endereço. Amistoso, o cachorro abanava o rabo para todos e as pessoas agradeciam meu esforço. Apesar de sujo, Marley parecia saudável e recusou quando lhe dei ração, o que me fez acreditar que alguém realmente cuidava dele, mas estava na cara que passava muito tempo na rua.
A casa do Lagoa ficava de esquina, um sobrado antigo, com paredes pichadas, que tinha sido meio demolido e depois fora fechado com tapumes. Bati palmas e chamei, mas ninguém me respondeu por um tempo. Olhei ao redor, sem muita certeza se estava no lugar certo. Não havia sinal de vida do portão. Uma parede da casa havia tombado, deixando seus dois andares expostos como um dente cariado, sem ninguém entre os escombros. Já pensava em ligar novamente para o contatinho do Marley para confirmar onde eu tinha errado, quando uma pessoa gritou de volta que Lagoa não estava.
– Eu encontrei o cachorro dele. Vim devolver.
Nenhuma garotinha se pendurou no pescoço do Marley. Nenhum velho com problemas respiratórios me agradeceu. Nenhum paciente terminal se recuperou milagrosamente. Uma voz de dentro da ocupação pediu para que eu deixasse o cachorro ali fora mesmo. Assim, como um envelope enfiado debaixo da porta.
Senti raiva. Claro que senti raiva, mas o que mais senti foi tristeza. Olhei para o Marley que esperava ansioso para saber o que devia fazer e soube imediatamente que eu não conseguiria deixa-lo ali, não assim.
– Se o cachorro não entrar, vou levar ele embora. Na rua ele não fica.
A porta se abriu. Uma outra mulher surgiu, rosto amassado, dentes trincados. Marley passou pelas suas pernas e entrou abanando o rabo. A mulher que o recebeu agradeceu, constrangida pelo que tinha dito antes. Eu disse que estava tudo bem, dei bom-dia e fui embora, mas era claro que não estava. Na outra esquina, enquanto voltava para casa, me veio essa vontade de chorar. Pelo cão, por mim e por uma família que aprendeu a viver assim, empilhada em algum cômodo de uma casa semi-roída para virar um prédio.
Corri para casa louco para abraçar minhas cachorras, certo que bastava isso para consertar o mundo de novo. Atravessei a rua meio atabalhoado e perdido. Subi até o meu andar sem fôlego e cheguei ao corredor, querendo ser derrubado pela força do abanar de rabos, o amor incondicional de quem só quer a sua presença. Abri a porta dobrando os joelhos para absorver todo o impacto da alegria peluda que jorraria sobre mim e sorri.
Meg e Juju combinaram de me ignorar. Podia ouvi-las dizendo: “Vai lá passear com o seu amiguinho.” Fechei a porta, pedi desculpas, fiz um cafuné em cada uma. Sem reação. Derrotado, tomei um banho e fui direto pra cama depois de perder a minha última batalha daquele dia. Era oito da manhã e eu só queria que o dia acabasse. De olhos fechados, senti quando alguém subiu no pé da cama. Juju girou, girou, girou e deitou perto dos meus pés. Não era tudo o que eu queria naquele dia, mas foi o suficiente.
There are no products |