Quando criança tinha dificuldade para dormir. Muitas crianças tem. Quando as luzes se apagavam, eu fechava os olhos ou cobria a cabeça, tentando me esconder dos terrores noturnos; as vezes sendo levado a imaginar criaturas que sondavam a cama a minha procura, sem me encontrar sob as cobertas.
A visita de um gigantesco esqueleto, muito maior do que um adulto, era frequente. Ele se inclinava, apoiando a mão descarnada na cama de cima do beliche, e aproximava o crânio do meu rosto a uma coberta de distância de onde eu tremia de olhos fechados. Eu nunca o via. Apenas prendia minha respiração e o ouvia se movimentar pelo quarto, enquanto eu suava medo.
Acho que sempre tive uma imaginação meio sombria.
Com a adolescência deixamos para trás a antiga casa dos meus avós, as tardes penduradas em galhos de arvores e o esqueleto gigante que me visitava todas as noites, mesmo assim dormir não se tornou mais fácil.
A nova casa também tinha o seu visitante noturno. Ele rastejava pelas paredes do quarto como um polvo repleto de tentáculos, tão obscuro que se confundia com as próprias sombras. Nunca tinha pressa, vinha com a certeza de que eu não iria a lugar algum, se avolumando como uma poça gosmenta no teto sobre a minha cabeça, gotejando sobre meu peito pronto a me sufocar até a morte. Era impossível me mover. Era impossível respirar. A coisa se espalhava sobre mim, tentando invadir meus pulmões de toda forma e eu precisava lutar para não gritar, ou ele entraria pela minha garganta.
Acordar era sempre um alivio, assim como as poucas noites em que nenhuma visita acontecia
Eu já era um homem feito quando contei essa história a um amigo e ele me explicou que eu tinha paralisia do sono. A mente está semi desperta, enquanto o corpo continua dormindo, daí vem a sensação de paralisia e as alucinações. Para minha surpresa, era uma condição bastante comum e só de saber disso eu já me sentia mais preparado para enfrentar meus pesadelos. As visitas continuaram, assim como as noites insones e o cansaço, mas era mais fácil de lidar com aquilo agora que se tratava de uma condição médica.
Eu já havia me casado, me separado, morado em outros países e me tornado esse ser patético de meia-idade que as pessoas conhecem. Tratava o ato de dormir como um mal necessário e aproveitava as horas extras do meu dia entre leituras e filmes. Morava em um apartamento térreo em uma rua arborizada, com pássaros que cantavam pela manhã, e focava minha energia no trabalho, como se o dinheiro pudesse me fazer esquecer os problemas da vida.
Era a minha quinta noite de insônia. Passava da meia-noite e eu olhava para a cama com rancor sabendo que se me deitasse ela ou algum dos meus visitantes me acordariam horas depois. Minha tática era deitar apenas quando estivesse insuportavelmente cansado. As vezes isso funcionava, normalmente não.
Já tinha tomado meu chocolate quente, minha capsula de valeriana e adiantava um trabalho chato quando ouvi um barulho vindo da cozinha. Achei que o vento tinha derrubado alguma coisa e corri apressado para ver se algo havia se quebrado, mas ao invés do vento descobri um gato cinzento caminhando pelos azulejos.
O susto foi maior para mim do que para ele. Quase grudei no teto da cozinha, enquanto o gato me olhava com olhos amarelos e entediados. Ri sozinho durante uns minutos antes de pensar no que deveria fazer. Achei que o bichano pertencesse a algum vizinho e que assim como tinha entrado também encontraria sua saída quando quisesse ir embora. Como bom anfitrião lhe ofereci um pouco de leite e deixei o vitrô da cozinha aberto, para que ele ficasse a vontade em sua visita.
O gato, porém, não pareceu se importar muito com meu sutil convite para que fosse embora. Tomou o leite e me seguiu até o quarto, deitando no pé da cama para uma soneca, como se a casa fosse dele e eu fosse a visita. Seria uma história engraçada para contar um dia e pensando nisso adormeci.
Foi a melhor noite de sono da qual posso me lembrar. Quando acordei pela manhã me sentia descansado como nunca e o gato havia desaparecido. Fiquei decepcionado com essa última parte – todos sabem o quanto eu gosto de animais – mas felizmente não demorou muito para o gato reaparecer. Era bom ter companhia.
Durante algumas semanas tentei descobrir o dono daquele gato, mas ninguém no prédio o havia visto. Tentei colocar uma coleira com meu nome e telefone em seu pescoço e ela desapareceu na primeira noite de sono. Espalhei cartazes pelo bairro, mas ninguém entrou em contato ao seu respeito. Cheguei a ficar acordado, espreitando para vê-lo sair, na tentativa de segui-lo para fora do prédio, mas como se soubesse dos meus planos, o gato permanecia tranquilo, até que eu pegasse no sono, então novamente desaparecia.
Por fim o batizei de Nix e o aceitei como parte da minha rotina. Sua companhia me fazia bem. Quando chegava, e eu ainda estava acordado, Nix me deixava acariciar o seu pelo comprido e cinzento, sentindo um corpo magricela por baixo da pele repleta de cicatrizes. Parecia que Nix tinha usado bem algumas das suas nove vidas e, agora velho, tinha escolhido um lugar pacato para passar a noite.
Foi uma época tranquila e bastante proveitosa. Eu que achava que as horas de insônia eram produtivas, descobri que com a mente descansada era capaz de fazer muito mais. Tinha energia para trabalhar, escrever e estudar e todo dia Nix vinha dormir na minha cama e eu relaxava sob o seu ronronado.
Nessa mesma época comecei a namorar. Em um dos nossos primeiros encontros contei a minha namorada sobre Nix e ela ficou ansiosa em conhece-lo. Fomos para meu apartamento. Nix não apareceu. Nós não dormimos muito.
– Foi uma ótima estratégia para me trazer para a sua casa. – Ela debochou de mim no dia seguinte.
– Como assim? – Quis saber.
– A história do gato. – Ela riu – Quase acreditei.
Eu insisti que não era história. Talvez Nix tivesse vindo e ficado assustado com a movimentação. Estávamos atrasados e não falamos mais sobre aquilo.
Na noite seguinte eu estava sozinho quando o gato apareceu. Ele se enrolou nas minhas pernas enquanto eu trabalhava, recebeu o cafuné como cumprimento e foi deitar no pé da cama, me esperando para dormir. Dei risada. Nix, como bom companheiro de quarto, havia me dado privacidade para me encontrar com uma garota. Aquilo se repetiu outras vezes. Minha namorada dormia em casa e Nix não aparecia, ela ia embora e ele retornava.
Foi engraçado por um tempo. Ela se convenceu de que Nix era uma invenção minha e para irritá-la eu as vezes fingia que estava vendo o gato pela casa como se ele fosse invisível, mas a piada logo perdeu a graça e eu senti que ela passou a me olhar com temor sempre que eu fingia que Nix estava por perto. Quando ela parou de perguntar sobre o gato, eu soube que tinha alguma coisa errada.
Um dia minha namorada veio buscar suas coisas. Não deu maiores explicações, disse apenas que não estava dando certo. Fiquei decepcionado, mas não surpreso.
Nix esperou ela se despedir antes de entrar pelo vitrô e se sentar no corredor, abanando o rabo delicadamente. Podia quase ouvi-lo dizendo que tinha avisado e o mandei calar a porra da boca.
Fiquei um bocado deprimido nos dias que vieram. Cheguei a colocar a culpa no maldito gato e fechei o vitrô para que ele não entrasse, mas Nix subia no beiral e arranhava o vidro, miando enlouquecidamente, até que os vizinhos ligassem reclamando do barulho.
Não adiantava argumentar que aquele gato não era meu. Quando ameaçaram chamar a zoonose, eu temi pelo pior e abri novamente a janela. Nix passou correndo por mim e se deitou no seu lugar de sempre, com um miado tímido que questionava se eu ia demorar muito.
Acabei demorando. Tomei seis cervejas enquanto mandava indiretas para minha namorada na internet tentando chamar a sua atenção e quando não deu certo, tomei uma dose de vodka me sentindo envergonhado. Fui me deitar bêbado, magoado e com um rancor terrível, mas Nix me recebeu com o fleuma de sempre, apenas uma bocejada e um breve alongamento, antes de se embolar e adormecer.
Foi quando bolei um plano. Eu ia dormir um pouco e acordar antes do amanhecer para tentar descobrir que horas Nix saia do apartamento e, quem sabe, tentar segui-lo até a sua verdadeira casa. Era um plano idiota, mas fazia sentido depois de seis cervejas e uma dose de vodka, então programei o despertador e fechei os olhos.
Quando o celular tocou eu fui rápido em desliga-lo, com medo de assustar o gato. Minha cabeça doía e eu tinha na boca o gosto de areia de construção. Olhei para o alto, mas não vi o teto. O quarto parecia anormalmente escuro, como se as luzes do bairro estivessem apagadas. O silêncio tinha a textura da camurça.
Olhei para o pé da cama tentando não me mexer muito, mas era incapaz de ver qualquer coisa. Me lembrei de quando era criança e tinha acordado assustado achando que havia ficado cego. Chorei quase a noite toda, até que meu pai acendeu a luz da cozinha e eu fui magicamente curado.
Sabia que estragaria a emboscada se acendesse a luz, mas não via outra solução. Peguei meu celular e ativei a sua lanterna, apontando o faixo de luz para o pé da cama.
Os olhos de Nix refletiam em brasa na minha direção. Meu susto foi tamanho que quase derrubei o celular. O gato estava de pé, com a coluna arqueada, o rabo arrepiado como um espanador apontado para o alto e com a boca aberta, chiando com os dentes a mostra. Tentei acalmá-lo chamando o seu nome, mas Nix tinha as orelhas baixas, parecendo pronto para o ataque. Confesso que tive muito medo, mas meu medo se tornou algo ainda pior, quando algo deslizou atrás de Nix, se afastando da luz do celular.
Algo pavoroso como as costelas de um tórax gigante.
Instintivamente eu me joguei para trás e cobri a cabeça com a coberta, como tinha feito na minha infância. Chorando baixinho, como um cão assustado, ouvi enquanto a coisa andava pelo quarto farejando a minha presença. O imenso crânio branco se inclinando sobre mim, examinando o monte trêmulo que se escondia sob a coberta. Orbitas vazias e cheias de ódio vasculhando cada centímetro da cama a minha procura, pronto a me tragar em loucura.
Eu só queria acordar daquele pesadelo.
Nix soltou um miado raivoso e eu ouvi quando algo bateu contra o colchão deslocando a cama para o lado. Podia ouvir o gato chiando e arranhando algo liso, como se deslizasse pelo telhado ou em ossos envelhecidos que não deviam estar ali.
Deslizei sutilmente a cabeça para debaixo dos travesseiros, onde ainda era fresco e eu podia respirar melhor, enquanto a batalha parecia tomar o meu arredor e congelei de medo quando o silêncio finalmente venceu. Estava coberto de suor. Queria tirar o travesseiro da cabeça para dar uma olhada, mas não tinha coragem. O ar ali embaixo parecia pouco, o que foi bom, pois de alguma forma foi aquilo que me acalmou e me fez adormecer.
Na manhã seguinte, como o costume, Nix não estava lá.
Quando ele retornou aquela noite eu o recepcionei com uma gostosa lata de atum. Ele cheirou um pouco. Comeu um pouco. Aceitou o carinho em suas costas como um cumprimento e foi para o seu posto ao pé da cama, onde se embolou aguardando por mim. É onde ele está agora enquanto eu escrevo. É onde ele esteve todos esses anos, mesmo que ninguém acredite na minha história.
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