R.I.P.
On April 26, 2017 | 0 Comments
R.I.P. |
Funeral Viking da revista History Answer

Ao acaso nós temos amor por personagens que não precisam de amor. Hoje, enquanto escrevia o out-line do segundo livro do Chamas do Império, me deparei com um personagem de joelhos, muito ferido, ele ainda sorria com ar desafiador na eminência de sua morte e pensei nas possibilidades para salvá-lo. Eu podia prendê-lo, podia jogá-lo nas águas do rio e deixá-lo sumir para surgir lá na frente. Era um personagem antigo, que me acompanhava a muitos anos, cuja função variou de planejamento em planejamento e a quem me afeiçoei pela convivência.

Vendo-o submisso ao seu destino, avaliei com muito cuidado tudo o que eu tinha imaginado para o seu futuro, as reviravoltas que surgiriam lá na frente, a importância que ele ganharia ao tomar as rédeas de sua vida, deixando de ser um lacaio para tornar-se um protagonista de sua história. Pensei no grande confronto que um dia aconteceria entre ele e seu antagonista – este também, tão gêmeo e tão distante – e cheguei mesmo a escrever a cena em que ele era humilhado e arrastado, planejando sua vingança, que seria arquitetada nas sombras, para um futuro não tão próximo.

Examinando a cena, me afastei um pouco, tentando enxergá-lo sem todas as possibilidades que eu desenhei para a sua história. Tendo em mente apenas aquilo que já se sabia sobre ele. Era tão ralo, tão medíocre, tão insignificante. Sua morte diante do leitor não tinha importância nenhuma, porquê sua vida, para o leitor também não o tinha. Não havia porquê ameaçá-lo, humilhá-lo, traí-lo. Não havia porquê transformar sua vida em um inferno, ou ceifá-la sem piedade. O personagem se encontrou em sua encruzilhada, sem vontade nenhuma de existir, porquê eu não havia lhe dado essa possibilidade. Tudo o que eu sabia sobre a vida incrível que ele tinha e ainda teria, nunca apareceu. Ele era um nome qualquer que surgia com objetivos narrativos claros e isso foi o mais triste que eu podia constatar sobre ele. Não fazia motivo matá-lo, pois ele simplesmente não estava vivo.

Restava saber se valia a pena dar-lhe vida ou simplesmente aceitar o meu fracasso em contar a sua história, descartando-o por alguém mais robusto. Alguém a quem eu oferecesse mais do que meia dúzia de falas. O personagem levantou a cabeça, certo de sua morte e cuspiu no chão uma mistura de sangue e desprezo, antes de engolir meia dúzia de palavrões que denunciariam seu medo. Diante dele estava a morte com uma expressão entediada. A morte balançou a cabeça. A morte respirou fundo. A morte se decidiu. A morte, era eu.

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