Adolescente, retraído em meus pensamentos, leitor voraz, depressivo como só um adolescente pode ser, eu era incapaz de me imaginar velho. Fechava os olhos, por muitas vezes, imaginando-me avô, pai, grande. Nada.
Já apaixonado pelas palavras, tinha certeza de receber o beijo tépido da morte antes dos vinte, presente sifílico de uma amante boêmia em algum beco úmido atrás de um café barulhento.
Mais tarde, quando os vinte já haviam chegado tinha certeza de entraria para sempre no clube dos 27, assassinado pela fama ou pelo tédio, em uma banheira de água quente ou com o nariz enfiado em um espelho embaçado em um quarto de hotel que faria o possível para abafar o caso. Errei novamente.
Os anos e os enganos domaram meu espírito entregando-o aos sonhos de futuro. Imaginei-me pai, imaginei-me avô. Imaginei-me contando histórias engraçadas em reuniões de uma grande família barulhenta e confusa, planejando traquinagens para os miúdos enquanto esperava que ninguém jamais me chamasse para a última valsa. Com a morte viriam as lágrimas de uma descendência vasta, que se imortalizaria em conversas animadas durante a noite, em diários soterrados no pó e em suspiros saudosos de um buraco que jamais se fecha. Mas eu me enganei novamente. Nenhum filho. Nenhum neto. Nenhuma memória.
A morte me rondava troçando dos meus fins, revirando a minha vida de forma que fosse impossível prever as últimas páginas. Um homem sem família deveria ter o direito de morrer cedo. Acidente de carro, queda de avião, assalto… a morte me seduzia com eventos dramáticos e definitivos, mas nada. Nem isso, só o silêncio. Quando a morte finalmente veio até mim, levou em seus dedos meus momentos mais felizes e me tornou as lágrimas que choravam pela minha ascendência.
Ainda lembro das horas perdidas diante do caixão aberto, as pessoas afastadas enquanto as lágrimas me manchavam os joelhos, as flores encostadas na parede, as velas que lutavam para queima, todo o silêncio do mundo e mais nada. Deitado sob um manto de flores, diminuto e vazio, a casca oca do que havia sido meu avô, um recado mudo, assertivo e grosseiro. Um lembrete de que meu fim seria outro, desprovido de amor, desprovido de lágrimas. Uma certeza de que embarcaria naquele trem sozinho, embora alguém fosse estar me esperando no além. Fiz 32.
Minha última obsessão é morrer com a idade de Cristo, depois disso acabaram-se as datas icônicas. Os anos irão se arrastar sem sentido, a morte se tornará imprevisível. Um apartamento cheirando a mijo de gato e livros empoeirados, sonecas na frente da televisão fora do ar, garrafas vazias esquecidas pelo chão, o barulho do vento na janela. Quanto tempo resta? Quão profunda é a água deste poço? Quão turbulenta? Aos 44 morreu Raul Seixas. Aos 88 Saramago. Dados duplos, erros críticos. Deus talvez jogue Dados, ao final…
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