Abrir espaço para algo novo exige que você se livre das coisas guardadas que já não lhe serve mais, mesmo daquilo que ainda parece ter algum valor.
É a terceira vez que falo sobre esse assunto e imagino que fale ainda algumas vezes, mas desobstruir os espaços tem sido um exercício de muita energia. Tirar para fora o velho, tem me ajudado a enxergar as coisas por ângulos novos e isso tem valido não apenas para as questões físicas e organizacionais do meu dia, mas nos processos mentais também.
Ontem eu joguei fora 75% do meu guarda-roupas. Talvez mais.
É algo que provavelmente todo mundo já quis fazer um dia, mas nunca toma coragem. Roupas tem história. Algumas foram presentes, outras viajaram contigo, tem sempre aquela camiseta furada daquele show de rock que se tornou lendário. Aquela calça que aquele amor antigo reclamava e que você só usava para manter a piada viva.
Peguei pilhas generosas de camisetas, daquelas que ficam por baixo e nunca olhamos, e enchi sacolas. Escolhi as camisas pela padronagem, sabendo exatamente o tipo de camisa que não queria usar mais e nem me dignei a abrir os sacos fechados a vácuo onde as jaquetas pesadas e as blusas de lã repousam já a alguns anos, pois nunca sinto frio o suficiente para olhar o que tem dentro. São coisas de outra existência, como peles de neandertais expostas abandonadas em uma caverna.
A sensação de um armário vazio foi muito mais prazerosa do que já tive com um armário cheio de roupas caras, simplesmente porque sei que tudo o que está ali me cabe e funciona. É prático, organizado, bonito.
O que restou de minha vida caberia em uma mala de rodinha. Quase nada, mas sincero. É o que tenho realmente usado e agora dá para entender o que me falta.
Não tenho pressa de encher esse armário. Na verdade, se depender de mim ele nunca mais ficaria cheio. Não sou adepto de vida minimalista, nem nada do tipo, acho que as pessoas precisam encontrar seu ponto de conforto seja lá onde esse ponto estiver, mas não tenho amor por objetos sem uso.
Tem um lado curioso sobre isso que eu só me dei conta nesse instante. Sou um homem sem histórico. Das minhas coisas antigas tenho pouco. Guardava um baú com pequenas peças de recordação que desapareceu em algum momento, mas hoje em dia nem isso. Tudo o que tive e que um dia não me serviu acabou ganhando o seu próprio rumo.
Outra coisa que acabei de me dar conta, neste instante, é o quanto as pessoas se aproveitaram de mim ao longo dos anos por conta disso.
Tenho espalhados pelo mundo, uma dezena de itens que emprestei e nunca foram devolvidos, alguns considerados definitivamente perdidos, outros naquele limbo entre pedir de volta sem razão e deixar criando pó, apenas por conta de seu valor venal.
Nem tudo são cacarecos; foram equipamentos de informática, fotografia, materiais de pintura, eletrônicos de todas as formas e tipos. Coisas que valeriam um bom dinheiro que por alguma razão nunca recuperei e ninguém nunca se importou em me oferecer. (E não, eu sou santo, nem rico, nem fiz voto de pobreza, nem nada do tipo. Sou apenas meio otário, mesmo.)
A única e orgulhosa exceção desse meu histórico de desprendimentos, são meus livros. Estes acumulo sem pena, os compro sem utilidade, os mantenho indevidamente como prisioneiros no plástico por anos, sabendo que alguns deles jamais serão lidos, não tenho o menor desejo de vender, doar, sequer emprestar. Amo todos os meus livros, não importando seu estado de conservação e tenho a data, nome e endereço de todas as pessoas, com um livro meu em mãos por algum acidente de percurso. Vocês não serão esquecidos.
Não sei explicar por que sou desprendido com o resto, mas consigo explicar por que sou tão apegado aos meus livros.
Quando era criança, não existia internet e a televisão era só mais do mesmo – Banheira do Gugu, Show da Xuxa, peito e bunda em toneladas ao som de bandas gringas que ninguém entendia o que estavam dizendo.
Nunca gostei muito de música e tinha muito tempo livre. Eram tempos mais simples, onde o tédio tinha espaço para crescer e se transformar em histórias na nossa cabeça ou traquinagens em nossas mãos. Com as traquinagens vinham os castigos, com os castigos vinha mais tédio.
Também não tínhamos muito dinheiro. Na verdade, não tínhamos dinheiro algum. A educação era algo importante, mas a estrutura da escola deveria bastar.
Nesse cenário, os livros entravam pela porta de casa como objetos raros, itens de doação de clientes dos meus tios, ou presentes comprados a muito custo e sacrifício. Cada um, um pequeno tesouro que eu devorava com medo de acabar antes que chegasse outro para ocupar o seu lugar. Às vezes relendo e relendo, apenas para sufocar o desejo de me meter em uma nova molecagem no mundo lá fora e acabar tomando outra surra de cinta.
Com os anos, consegui juntar alguns títulos confusos que, em geral, não eram para a minha idade, mas que amava, limpava e relia sempre, ao ponto de decorar trechos imensos de obras que não faziam o menor sentido para uma criança. Em duas prateleiras de dois metros, ficava a minha minibiblioteca de coisas aleatórias, onde aquele mundo monótono dos anos 1990 já não era tão chato.
Até que um dia eu entrei no meu quarto e todos os livros tinham sumido.
Abibliofobia é o medo irracional de ficar sem um livro para ler de uma hora para outra. Como toda fobia pode ser tratada e acompanhada por um psicólogo. Conheço muitas pessoas que andam com um livro de um lado para o outro mesmo nas situações mais inusitadas em que vai ser impossível abrir uma página.
Quando entrei pela porta do quarto, não sabia o que era abibliofobia, mas entendi o que era o vazio. Sinto o frio do vácuo que se formou enquanto minha mente tentava entender o que não estava mais vendo e o que estava errado naquele mundo. Minha pele ainda se eletrifica com o choque que percorreu cada nervo do meu corpo ao descobrir meu santuário conspurcado.
Recuperado o ar e os movimentos, fui perguntar para minha mãe o que tinha acontecido enquanto eu estava na escola. A resposta, simples e sem maldade, era que minha tia havia passado para recolher doações para a igreja e com ela levou os livros.
Não sou muito fã da igreja desde então. Ou da minha tia. Não por acaso nos desentendemos depois dos anos e hoje fico feliz por não nos falarmos mais. Não tenho apego algum ao que não me serve. Isso vale para as roupas que ocupam espaço no armário, aos eletrônicos que os amigos me roubam sem disfarce, mas também para pessoas e relações que perdem o sentido ao longo dos anos. Minha tia foi uma dessas pessoas, nem a única, nem a primeira, ou a última. A vida é curta para ficarmos arrastando essa quantidade de peso inútil.
Exceto pelos livros. Existe sempre uma forma de carregar os livros. Minha coluna que lute na próxima mudança.
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