A essa altura todos vocês já sabem que a Meg, minha cachorrinha é uma tremenda encrenqueira (leia-se: uma chata de galocha), que late para tudo o que vê de diferente na rua, mas nem todo mundo que esbarra com ela tem essa noção. A cara peluda e simpática costuma atrair dedos desavisados que podem receber um abanar de rabo ou um rosnar de dentes tortos, dependendo do humor do dia. Tentar corrigir isso consta na minha longa lista de fracassos nessa vida.
A verdade é que como todo valentão de escola e bolsominiom da internet a Meg é só covarde e sua tentativa de intimidação não resiste a uma investida séria. Só fui entender isso quando um idiota chutou a Juju, minha segunda cachorra, e eu me vi obrigado a defender sua honra, o que acabou com dois marmanjos rolando na calçada como crianças em um pátio. Enquanto eu e o idiota lutávamos pela razão, Meg, a valente, andava de um lado para o outro sem saber o que fazer, enquanto Juju, calma e plácida, mordia o calcanhar do puto tentando me ajudar de algum jeito. As coisas são como são. Meg late quando está acuada, Juju não. Ele deve ser mais parecida comigo.
Casa nova, vizinhança nova, novas pessoas, existem muitos motivos de desconfiança nos dias de hoje e a Meg aproveita todos eles para demonstrar sua valentia. Late para os cães, para os gatos, para as pessoas de máscara, para as pessoas sem máscara. Suspeita de chapéu, guarda-chuva, bengala, carrinhos barulhentos, música alta, gritos ao telefone. Rosnar é um tique natural, que só não é maior do que a curiosidade em explorar o mundo e cuidar da vida alheia.
Dia desses, na nossa exploração diária do mundo ao nosso redor, havia um homem esperando diante da casa de um dos vizinhos. Talvez pela máscara, ou por um instinto secreto que só os covardes tem, a Meg imediatamente começou a latir para o rapaz, ignorando completamente minhas tentativas de acalmá-la e os meus pedidos de desculpas. Quanto mais eu pedia calma, mais a Meg se irritava e mais o rosto do homem se torcia. Ele mesmo com os dentes a mostra por baixo da máscara.
Rosnar é um tique natural […]
Eu sei que vou ter problemas quando peço desculpas pelo comportamento da Meg e a pessoa não desvia o olhar para mim. O homem encarava a cachorra com ódio, como se pudesse afastá-la com o poder da mente e a ameaça clara só aumentava o desespero da Meg. A coisa toda não durou mais do que alguns segundos, mas foi tenso.
Dá um certo medo de pensar em como tudo podia ter dado errado em um pequeno instante. Se esse idiota fosse como o outro e tivesse chutado minha cachorra, seria com ele que eu estaria rolado no chão e eu duvido que essa briga terminasse como a briga de escola que tive lá atrás, mas eu não sabia de nada naquele instante. Sabia apenas que precisava acalmar minha cachorra, não por que fosse perigosa, mas por ser a coisa mais educada a se fazer naquele instante.
Sinceramente, não sei o que pensar sobre o acontecido. Eu o categorizei naquela estranha gaveta de eventos surreais que eu não sei se aconteceram de verdade ou se foram só um delírio da minha mente, em algum lugar entre o homem que chutou a Juju e o matador que encontrei caído na calçada e que tentou me apresentar a sua filha enquanto tomávamos café e tornando-se esse pedaço distorcido de realidade onde nada faz sentido, resolvi chama-lo de: “O dia em que a Meg pelejou com o demônio”.
Sem outro aviso, como se achasse que o movimento surpresa pudesse impressionar a cachorra, o homem tirou uma faca eu não se de onde e em movimentos teatrais, um tanto ridículos, outro tanto assustadores, riscou o chão na frente da Meg. É difícil imaginar o que ele pretendia com aquilo. Entrar em uma peleja de peixeira com uma cachorra não me parecia algo verossímil e acreditar que ela entendia o significado do desafio era algo bastante constrangedor.
Imaginei que talvez o gesto fosse para me impressionar, o que de fato o fez, pois entendi que estava lidando com alguma espécie de loucura e gente louca é capaz de qualquer coisa, riscar a faca para uma cachorra no meio da rua, entrar em uma peleja com seu dono ou acreditar nas cretinices que o presidente fala. Lutando contra a fúria dos dez quilos de Meg à qual se somavam os nove quilos de Juju que agora se unia para defender a irmã, eu pedi desculpas mais uma vez e consegui me afastar, sem que o homem me dissesse nenhuma palavra.
Sei que naquele dia, em alguma realidade paralela, uma variante minha ficou naquela calçada, em uma poça de sangue. O homem, nem se importou em fugir, alegou a polícia que os cães o atacaram e que estava se defendendo. Os policiais olharam o tamanho das duas cachorras sujas de sangue e balançaram a cabeça, mas não o desmentiram. Não havia razão. O trabalho deles ali já tinha acabado.
Nessa realidade saímos todos vivos, o que é bom. Meg continua rosnando com os dentes tortos a mostra. Eu posso entende-la. O mundo ao nosso redor continua uma bosta, cada dia mais assustador. Eu, pelo meu lado, continuo empenhado em pedir desculpas por ela e a tentar defende-la se for necessário, uma história por vez.
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