Minha terapeuta me disse uma vez que por algum motivo me faltava raiva. Talvez vocês não consigam entender o susto que eu tomei naquele momento. Completamente perdido depois do fim de um relacionamento, meio desempregado (porém trabalhando), com dívidas se acumulando junto com problemas de saúde, o mundo era um lugar absolutamente detestável para mim. Mesmo assim, me faltava ódio.
– Porquê você nunca revida?
Lembrei da minha adolescência, onde eu andava pela rua quebrando coisas. Furava pneus, quebrava janelas, derrubava muros, pulava no capô dos carros. Não importava. Bastava ver para querer destruir. Era o mesmo na escola. Sempre fui bom de papo e dificilmente tinha problemas, mas se eu perdesse a paciência queria mandar alguém para o hospital. Coisa engraçada a minha raiva, ela me domina mas não me apaga. Cada etapa do processo é pensado para causar a máxima destruição possível no momento. Jogar cadeiras, furar com compasso, empurrar da escada. Tive sorte de ninguém nunca ter se machucado a sério, mas foi sorte.
Eu queria ter uma resposta, mas fiquei pensando naquilo por um instante. Minha raiva não fluía, ao invés disso acumulava e de vez em quando explodia sem nenhum sentido, e então se apagava. Raiva eu tenho de sobra, o que eu não tenho é rancor. Passado o momento resta apenas a decepção. Com o outro, comigo, com o mundo.
– A raiva é um sentimento que a gente considera ruim, mas ela também tem outro lado. A raiva nos protege de uma ameaça. Quando algo nos faz mal, é normal sentir raiva.
Guardei as palavras da minha terapeuta durante muitos anos, tentei ter raiva das pessoas que me fizeram mal, mas sempre fui o primeiro a lhes arrumar desculpas que quase sempre resvalavam em alguma relação conturbada que a pessoa tinha com o pai.
O meu pai parece nunca sentir raiva. Mesmo quando alguém reclamava das coisas que eu estava destruindo, seu olhar era protocolar e não precisava dizer nada. Só perdia o controle quando bebia, felizmente não bebe mais. Meu pai me bateu apenas uma vez, trinta anos depois a bofetada ainda arde.
As vezes tenho vontade de marcar uma hora com a minha terapeuta só para relembrar essa história. É provável que ela costure algum sentido em tudo isso. Na raiva que eu escondia, na raiva que meu pai escondia. A raiva que meu avô sentia quando, já meio senil, resolvia bater na televisão com um martelo pois o rapaz do jornal era mal educado e não respondia as perguntas dele.
Não sei se faz sentido, mas tudo o que eu sinto agora é raiva. Sinto um grande desprazer por tudo o que acontece no mundo. A raiva transborda em forma de ironia, em palavrões mal humorados, em um sarcasmo venenoso que adormece a ponta da minha língua. Sinto muita raiva das pessoas, mas de ninguém em específico (além do presidente). Da forma como elas escolhem se deixar manipular, do egoísmo com que elas lidam com os problemas. Do cinismo de suas palavras gentis em meio aos atos odiosos. Sinto raiva da estupidez seletiva, cheia de orgulho, com gargalhadas debochadas enquanto o mundo queima ao redor. Sinto raiva de não ter sido eu a botar fogo no mundo ao redor. Sinto raiva dessa sensação de que estamos todos morrendo aos poucos, de forma contida e planejada para causar o máximo de sofrimento. Arrastando os dias da humanidade sobre esse globo de lama enquanto ela devora e destrói tudo. Talvez seja exagero, não sei, mas não me sinto mais a vontade nesse mundo. Se sigo em frente, é alimentado pela minha própria raiva. Este é o verdadeiro motor do mundo.
There are no products |