Toda história nasce de um pacto. O autor se senta diante da folha e escreve em minúcias a ata deste contrato, prometendo solenemente, diante das musas, com a mão na poética que irá te contar uma história que irá te agarrar pelo nariz e te arrastar para fora do seu cotidiano. Vai te apresentar personagens que você não conhecia, te dar uma vida que não é sua. Vai te enfiar em conflitos, te salvar de perigos, te fazer rir, chorar, sangrar e se apaixonar e te trazer de volta a salvo, embora talvez você já não seja o mesmo. A sua parte do acordo é entregar o seu tempo, bater palmas e dizer em voz alta que acredita em fadas.
Mas aquele rapaz que se senta atrás de você ouvindo música no fone de ouvido o dia inteiro não acredita. Se você duvida de mim, pare de ler agora e pergunte para ele com todas as letras se ele acredita em fadas, mas tenha certeza que quando ele disser as palavras “fadas não existem”, outra fada morrerá na terra do nunca. Existem poucas hoje em dia. Tão raras que poderiam substituir o urso no logo da WWF.
A extinção progressiva das fadas provavelmente não é culpa do rapaz de fone de ouvido. Nem de todas as outras pessoas que deixaram de acreditar ao longo dos anos. A culpa, acredite ou não, é dos contadores de história. Foram eles que prometeram manter as fadas vivas, foram eles que criaram o pacto, e se eles tivessem conseguido manter sua promessa, arrastando os seus espectadores pela grande aventura da história, eles ainda acreditariam e as fadas não estariam em risco.
Começou quando Samuel Taylor Coleridge, um poeta e ensaísta inglês, resolveu nomear esse pacto e registrou o termo suspensão da descrença. Segundo Coleridge, ao ouvir uma história, o espectador aceita a sua premissa, por mais fantástica que seja, como realidade. Suspendendo seu julgamento em troca do entretenimento. A ideia é que ao ler um livro, ver uma peça, assistir um filme, ouvir uma história, o público flexione a realidade para que a obra faça sentido.
Coleridge foi, sem outras palavras, um tremendo canalha.
O que ele fez foi transferir a responsabilidade sobre a verossimilhança da história ao espectador, tirando dos próprios ombros a culpa por uma história que não cumpriu o seu papel, que foi incapaz de romper o véu da realidade e entreter o seu receptor até o seu final. Coleridge empurrou o machado sujo de purpurina e sangue de fada na mão do transeunte e lhe apontou o dedo, tornando-o culpado da família da Sininho. Ele devia se envergonhar.
Sempre que vejo uma crítica sobre um trabalho ficcional implorando aos espectadores que usem a suspensão da descrença para aproveitar uma obra, eu morro um pouco. A suspensão da descrença não é (ou não deveria ser) um botão de ligar e desligar, que você usa dentro de uma história, ou, caso eu esteja enganado e realmente exista um controle remoto como esse, ele não deveria estar na mão do espectador. O autor não só tem o direito, mas o dever de arrancar qualquer lapso de fé do espectador, abocanhando-o como uma imensa baleia e arrastando-o para o fundo do oceano, antes que ele consiga sequer entender se o seu nome é Jonas, Pinóquio ou Gepeto.
Pedir ao leitor que suspenda a sua descrença na história é assumir que o trabalho foi mal feito. Uma história bem concebida não precisa de defesa, não precisa de letras miúdas. Se o autor fizer direito o seu trabalho, o leitor não terá outra opção exceto deixar a descrença do lado de fora, enquanto nada de braçada nos mares mais bizarros. Uma história não precisa ser “real” para se fazer acreditar. Ela precisa ser verossímil. Precisa fazer sentido dentro de si mesma, nutrindo o espectador com tudo o que é necessário para ele não fazer comparação com o que existe fora daquela realidade. Uma história pode romper qualquer lei da lógica e da física, mas precisa fazê-lo de forma que o espectador entenda e aceite aquelas novas regras como algo natural.
O leitor não tem nenhum poder sobre isso. O mero fato dele pensar na suspensão da descrença no decorrer de uma história é sinal de que o autor falhou e não cumpriu com a sua parte do acordo. Como criador de histórias, o autor precisa entender o poder que tem nas mãos, mas também deve entender sua responsabilidade, trabalhando para que o espectador não pare para racionalizar sua história até que seja tarde demais e ele tenha sido consumido pela narrativa.
Toda história nasce de um pacto. No decorrer desta história, você prometeu ao seu espectador que a realidade lá fora deixaria de existir. É a sua responsabilidade. Faça o melhor e o faça com vontade. Do seu trabalho depende a vida de milhares de fadas. Não falhe!
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