EDITADO : Depois que eu publiquei esse artigo, descobri que saiu a edição da Strange Horizons (em inglês) dedicada exclusivamente aos novos autores de literatura fantástica brasileira. Aproveitem!
O assunto da internet desta segunda-feira foi o artigo escrito por Santiago Nazarian para a Folha de São Paulo sobre os percalços da literatura fantástica brasileira. Pensei em escrever um artigo sobre minha opinião a respeito, mas a Aline Valek se encarregou disso e eu não vejo sentido em prolongar a discussão sobre cada ponto levantado.
Apesar da pele de bebê criado a base de chopp barato, estou chegando nos meus quarenta anos, o que me traz algumas peculiaridades a respeito de como vejo as coisas. A primeira delas é que o tempo que antes parecia infinito de repente parece limitado, então perder tempo me estressa terrivelmente, a segunda é que boa parte das discussões que vejo são pastiches de discussões anteriores.
Quase vinte anos atrás, quando apresentei a uma grande editora meu primeiro original, recebi uma cartinha educada com a avaliação do meu livro. Tinha alguns erros de português, a estrutura era interessante, precisava de alguns acertos para chegar em uma ou outra faixa etária, mas tinham adorado. O único problema é que a editora nunca tinha publicado nada naquele estilo e não sabia muito bem como proceder. Fiquei feliz pela resposta, mas em dúvidas sobre o que queriam dizer sobre o estilo, então comecei a procurar autores que se parecessem com o que eu gostaria de escrever e foi quando me dei conta que a maior parte da literatura fantástica épica, no Brasil, vinha de fora. O que havia de mais próximo ao que eu queria eram os contos publicados na revista Dragão Brasil, livros e romances eram coisa rara.
É preciso entender que isso tudo foi no principio da internet no Brasil, antes mesmo do google ter dado acesso ao conhecimento com um click, quando a gente trocava informações através de cartas e zines impressos, vez por outra através do mirc ou do chat do uol (tá, parei, se não daqui a pouco vou precisar de fralda geriátrica). Isso para explicar que existia gente produzindo literatura fantástica sim, mas estava espalhada e tinha pouco ou nenhum espaço no mercado.
Hoje na minha estante tem 40 títulos de literatura fantástica nacional de contemporâneos. No meu Kindle deve ter um número se não igual, ainda maior. Se eu somar a eles os livros de literatura policial e realismo mágico, salto fácil para os 120 títulos.
Só nos últimos cinco anos eu devo ter sido apresentado a mais de cinquenta autores diferentes. Gente que eu nunca tinha ouvido falar, que começou agora, ou que, como eu, não tinha encontrado seu espaço, mas agora pôde tirar os originais da gaveta. A literatura fantástica nacional nunca esteve tão forte quanto hoje.
Acho importante olharmos ao redor para perceber tudo o que vem sendo conquistado. Em 2019 aconteceu a segunda edição da Casa Fantástica na FLIP, um evento maravilhoso dedicado apenas a literatura fantástica, com debates incríveis e espaço para encontros memoráveis. Estávamos presentes, ocupando o espaço ao lado de grandes casas editoriais e todo tipo de “autor cult” que a crítica adora. Casa cheia todos os dias.
Temos hoje um número bastante expressivo de editoras dedicadas a literatura fantástica brasileira. Editora Draco, Editora Avec, Editora Arte & Letra, Editora Dame Blanche, Pyro Editora, Plutão Livros, para citar apenas as primeiras que me vêem a mente. Dando espaço à muitos autores novos com profissionalismo e respeito pela obra. Enfrentando a carnificina da distribuição de livros no país para conseguir chegar ao público, competindo com editoras grandes que negociam pesado o espaço das livrarias.
Falando nelas, mesmo as editoras grandes se renderam aos novos tempos, incorporando autores brasileiros de fantasia em seus catálogos. Felipe Castilho, André Vianco, Eduardo Spohr, venderam milhares de livros e provaram que existe interesse sim para a edição de fantasia no Brasil, se for dado espaço para ela crescer.
Não podemos esquecer, é claro, das revistas eletrônicas de fantasia. Trasgo, Mafagafo, Taverna, Tempos Fantásticos, mitografias, que vêm se mantendo firmes e fortes através do esforço dos seus criadores e com o apoio braçal e financeiro de muita gente interessada em manter a chama viva.
Claro que nem tudo são flores. Tem muita coisa que precisa ser melhorada, mas esse não é um problema exclusivo do fantasismo brasileiro. Em um país com uma média de 2,43 livros por ano, seria esperar demais que a fatia da literatura fantástica fosse um mercado milionário. Lê-se pouca literatura fantástica no Brasil, porquê lê-se pouco no Brasil. Ponto. Em contraponto, os autores de literatura de gênero no país são os mais organizados e são os que melhor exploram os recursos da internet para gerar engajamento e alavancar a produção.
A produção cultural no Brasil vive em crise, e a crise se intensifica com um governo abertamente contra todos os movimentos artísticos, mas não existe sentido em se usar isso como demérito para a literatura fantástica, classificando-a de fútil. São em tempos sombrios como estes que a literatura fantástica se faz mais necessária, explicitando e prevendo aquilo que perde a obviedade nas páginas do jornal. É chamar a obra de Orwel, Asimov, Gibson, Veiga, Marques, Saramago, Huxley, Herbert, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Rubião, Brandbury, Clark, Le Guin – apenas para citar alguns dos nomes mais conhecidos – de fútil, ignorando todo o seu aspecto politico e crítico da sociedade. Toda produção cultural é um reflexo do seu tempo, quer o autor queira quer não. Quer se passe em uma galáxia muito distante, ou em reinos dominados por uma sociedade teocrática.
E se isso não for verdade. Se você encontrar uma obra que te desligue completamente do pensamento crítico e te transporte, apenas por algumas horas, para uma realidade diferente eu te prometo, meu amigo, isso vai te fazer bem e te trazer forças. A realidade vai estar aqui para quando você voltar, mas talvez você seja uma pessoa melhor para lidar com ela.
Boa leitura a todos.
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