O dia em que plagiei J. M. Beraldo
On January 14, 2021 | 0 Comments

Não existe nada mais inspirador do que o prazo final. É verdade. Minhas melhores ideias surgiram em cima da hora e foi nesse espírito de que no fim vai dar tudo certo que eu comecei a escrever um conto para a Gazeta Ordinária. O enredo era interessante, em uma São Paulo (mais) distópica, meio black mirror, misturando milícia, usuários de drogas e o cenário bisonho da Cracolândia com as contradições do nossos sistema de saúde. Tinha tudo para dar certo e eu fui dormir com aquela sensação gostosa de dever cumprido. Aquela ansiedade de colocar a história no mundo.

Meus guardiões falam comigo pela manhã. Você pode chamar do que quiser, espíritos do além, deuses do passado, sinal alienígena, conexão transdimensional, clarividência ou subconsciente, mas é na vigília do sono que eu ouço falarem comigo e as palavras daquele dia foram: “aquele conto é idêntico a leitura que você fez do João Beraldo esses dias”. Pulei da cama. Não deu outra.

O dia em que plagiei J. M. Beraldo |
Imagem do FreePik

Não era a estrutura, era o contexto. Todo o enredo partia da mesma premissa, claro que com desenvolvimento e finais diferentes, ainda assim… estava na cara. O conto tal como estava não passava de uma fanfic da história do Beraldo e eu não acreditava que tinha deixado aquilo acontecer.

Histórias ganham vida. Parte do trabalho de escritor é dosar a condução do demônio pelos chifres para onde a gente quer ir com a liberdade que ela tem de te levar para caminhos desconhecidos. A história do João tinha ficado presa em algum lugar da minha mente e quando deixei o touro brabo correr, foi para lá que ele procurou pasto. Não sem motivo, é uma ótima história.

O João Beraldo é um dos autores nacionais que eu mais me identifico. Ele tem uma produção assustadora e fez um excelente trabalho em Império de Diamante e Último Refúgio. Seus contos são dinâmicos e geralmente me levam logo de cara pela história. Se existe alguém que merece ser inspiração é ele e eu tenho certeza de que quando ele ler essa história vai rir da minha cara, pois ele é assim mesmo. Em outras circunstâncias provavelmente ele pediria inclusive para eu publicar a história, mas tem um porém nisso tudo. O conto que eu plagiei do João Beraldo ainda não foi lançado. Eu era um dos felizes leitores beta da história.

Histórias ganham vida. Parte do trabalho de escritor é dosar a condução do demônio pelos chifres para onde a gente quer ir com a liberdade que ela tem de te levar para caminhos desconhecidos.

Ser leitor beta de outro autor é sempre algo arriscado. O seu colega depositou a confiança em sua integridade e sinceridade e você deve honrar essa confiança se não for um saco de bosta. Ao mesmo tempo tudo o que consumimos nos influencia. Absolutamente tudo, mesmo de forma inconsciente, então você precisa ter cuidado quando lê uma história inédita, para se distanciar dela no seu próprio trabalho. Meu truque é nunca ler gêneros em que estou escrevendo naquele momento. Se estou escrevendo uma história policial, leio histórias de cavalaria, se estou escrevendo uma space opera, leio contos de terror. As influências vão continuar por ali, mas se o gênero for o distante o suficiente ela acaba se mesclando melhor e não fica tão evidente.

Olhei para o relógio, faltavam dez minutos para o envio da Gazeta Ordinária. Seria a primeira do ano e já tinha começado da pior forma possível. Cancelei o envio. Era o certo. A única solução dali para frente seria pedir desculpas, pensar ao longo do dia em outra história e enviá-la no dia seguinte. Aquela parecia uma semana ruim. Plena segunda feira e eu já queria que a semana acabasse. Estava cansado e pensava com dificuldade, meu corpo se movia por pura memória muscular enquanto eu ficava tentando adivinhar o que ele estava fazendo. Porquê estava abrindo a geladeira novamente? O que estava procurando pela janela da sala? Em que momento tinha pego o celular. Estava com fome.

E foi nesse exato momento em que tive um estalo. Olhei para o relógio. Tinha realmente perdido o prazo, mas não precisava perder o dia. Estalei os dedos, girei o pescoço e comecei a digitar. Em pouco mais de quarenta minutos eu tinha escrito “Nós, os famintos”. Diagramei a nova edição da Gazeta, improvisei uma capa que não era das mais criativas, mas não me comprometeria, respirei fundo e apertei para enviar. Quarenta minutos. A história logo estava no ar. Não existe nada mais inspirador do que o prazo final.

É verdade.

Se você não conhece o trabalho do J. M. Beraldo, é uma boa hora para dar uma olhada no site dele.

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