O Réveillon
On January 4, 2021 | 0 Comments

Tenho inveja de quem consegue ser otimista. Também tenho vontade de esmurrar a boca da pessoa até que ela comece a cagar os próprios dentes.

O réveillon é aquele momento do ano em que escolhemos revisar todas as bobagens que fizemos nos últimos 365 dias, nos prometendo não repeti-las pelos próximos 365, mesmo sabendo que estamos fadados ao fracasso. Tudo na data é arbitrário, começando pela definição do momento do ano, como se existisse uma linha de chegada desenhada no meio do espaço, que marcasse a 2021º volta da Terra depois que Cristo deu uma passadinha.

A simples definição da data já me incomoda. Se ao menos o ano terminasse com o inverno e recomeçasse com a primavera, eu ficaria satisfeito com a ideia de que um tempo foi superado e outro está começando, mas alguém em algum lugar chutou um número que parecia fazer sentido, o sentido se perdeu e ficamos apenas com o hábito e as tradições.

Roupas velhas e confortáveis que vestimos sem nos perguntar o motivo. O relógio bate meia-noite, o barulho dos fogos anuncia o velório de um ano de merda e os drinks de cidra barata festejam o ano ranhento que já se esgoela no berço para que troquemos sua fralda.

Não, eu não sou fã da data, nem das falsas promessas. Essa concepção de que a página é virada quando dezembro acaba para começarmos de novo e essa esperança sem sentido de que o ano que vem seja melhor do que aquele que passou me deixa maluco. Todo os anos desejamos feliz ano novo e todos os anos as coisas só pioram. É difícil imaginar o que pode vir de pior depois de uma pandemia mundial. Ou melhor, não é difícil, mas prefiro não fazê-lo, pois não tenho roupa para receber o apocalipse.

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Vocês podem achar que sou azedo (e estão com razão) e um hipócrita (o que não está de todo errado), pois, como todas as outras pessoas do mundo, gastei meus últimos minutos do ano mandando mensagens de feliz ano novo aos amigos e desejando para eles saúde, sucesso, um ano mais gentil e a decapitação do presidente, mas essas coisas acontecem no automático. É só roupa velha que nos traz conforto. O sofá continua o mesmo e a reprise da televisão também não muda.

Este ano farei diferente. Cumprirei todas as metas, voltarei para a academia, entrarei em um regime, ficarei milionário, conquistarei a lua que está em posse de macacos venusianos e fundarei um estado independente, onde quem faz arminha com a mão perde o dedo para o estado. Escolha ai duas ou três mentiras que te façam feliz e coloque na lista que será descumprida a partir de segunda-feira. Sejamos claros, a meta de 2021 é a mesmíssima de 2020, pois nada mudou depois da meia-noite. Fomos reduzidos as nossas funções básicas, o chamado protocolo de carnaval: “Não morrer. Não matar. Não transar no banheiro químico.” Não dá pra ter outros planos além disso.

O ano de 2021 começou com uma tremenda desvantagem com relação ao ano de 2020, porquê no ano passado nós não tínhamos ideia do que iriamos enfrentar, mas desta vez já temos experiência em dedo no cu e gritaria. Crise, pandemia e um sociopata na presidência. Fome, Peste e Morte. Guerra ficou de fora, por falta de pólvora. Dos três cavaleiros, nenhum deu mostras de que deve arredar o pé, então nos resta apenas manter o moicano e a jaqueta de couro enquanto nos perguntamos “Quem matou o mundo” e fazemos um minuto de silêncio em respeito a família de Max que será atropelada por uma gangue de motociclistas em algum lugar da Austrália, se me lembro bem do filme.

Tenho inveja de quem consegue ser otimista. Também tenho vontade de esmurrar a boca da pessoa até que ela comece a cagar os próprios dentes. Todo dia quando acordo, só consigo lamentar a merda onde nos enfiamos. Levantar da cama é um desafio espiritual e abro a janela torcendo para assistir um meteoro em rota de colisão com a Terra para descobrirmos se ela é redonda e racha, ou plana e flipa.

Então chega meia-noite. Os fogos. Os brindes. Os sorrisos. Os pratos e talheres sujos. O sono. E no dia seguinte, a paz universal dos restaurantes fechados, corredores de shoppings vazios, ruas quase desertas dispersando os últimos bêbados perdidos pelo caminho e a certeza absoluta de que absolutamente nada mudou.

Fome, Peste e Morte.

Não morrer. Não matar. Não transar no banheiro químico.

Feliz ano novo e boa sorte a todos.

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