Qual é o tema da sua história?
On March 6, 2018 | 0 Comments

Estes dias eu estava pensando sobre como alguns temas se repetem nas nossas histórias. Não estou dizendo daquele tema intencional que você usa para amarrar um conjunto de histórias, mas das ressonâncias secretas, aquelas que seu inconsciente mastiga em silêncio e que acaba vazando aqui e ali.

Conscientemente é fácil dizer que o grande tema do Chamas do Império é a guerra e suas repercussões, mas existe um tema menos óbvio que aparece a todo momento e que de certa forma me parece ainda mais importante do que batalhas épicas e monstros devoradores de almas. Se alguém me perguntasse hoje sobre o que eu estou escrevendo, eu diria que o tema das minhas histórias é a memória.

Toda vez que eu me sento para escrever uma história, eu tento me lembrar de como foi. Não como se eu a estivesse criando naquele instante, mas como se estivesse relembrando algo que ouvi certa vez e que eu sei que é verdade. Quando termino de escrever, quero ter sobre ela o reconhecimento de que foi exatamente assim, de que não menti para mim mesmo.

Jhomm Krulgar o personagem central do Teatro da Ira, aceita trabalhar para Thalla por causa de uma memória recorrente, que o atormenta em sonhos, noite após noite. Uma promessa de vingança que ele fez a uma amiga de infância. O que ele lembra daquela noite é confuso e fragmentado, como um sonho de infância que já não temos muita certeza se aconteceu ou não, mas que escolhemos aceitar como verdade. Krulgar é essa ferida aberta ambulante, que ataca primeiro para não se machucar.

No gigante da guerra nós temos Lenna, que luta para preservar as lembranças dos seus pais, enquanto lida com sua ausência e Ward, que modifica suas próprias lembranças transformando-se em herói.

Essas escolhas não foram conscientes, são só detalhes que acabaram transparecendo no papel, mas a forma como os povos lidam com seus registros, foi uma decisão que eu tomei a muito tempo e que refletem também essa preocupação com a sua memória.

“O que os homens guardam com papel, e os dhäeni relembram com cantos, os khäni preservam na pedra. O papel se consome com fogo. Os cantos se dissipam no vento. A pedra se lembra para sempre.”

Esse ditado khani diz muito sobre cada uma das três raças do império e sobre como cada uma lida com a sua memória. Os registros dos homens, feitos em papel, são um reflexo da sua maleabilidade em preservar os fatos. A história dos homens é orgânica, cheia de buracos, contraditória e frágil. Se ramificando em opiniões que não estão preocupadas com a verdade. A história dos dhäeni é oral, sobrevive na memória e inevitavelmente sofreu alterações através dos séculos. A única verdade que eles conhecem é a atual, já que não existe registro do que houve antes. Sua memória como um povo é preservada pelo eagon, o orador, que alimenta e se alimenta da Grande Canção do Mundo. Os khäni, por outro lado, mantém seus registros em pedra. Suas bibliotecas são vastos salões repletos de colunas, onde sua história é preservada e assim é a sua memória. Eles nunca se esquecem de nada e dificilmente mudam de ideia.

Os meus últimos trabalhos, que ainda não foram publicados, também brincam com as questões da memória. Uma capitã da guarda que relembra o dia mais triste da sua vida, um grupo de batedores que prestam as últimas homenagens a um amigo querido, um velho monge contando uma história de quando não era assim tão velho. Os personagens e suas memórias, conflituosas, incoerentes, mentirosas, imprecisas e aflitivas, são provavelmente a parte que eu mais gosto nas minhas histórias. A forma como nós criamos nossas memórias é fascinante. A forma como nós as alteramos inconscientemente é praticamente uma obsessão. É como se o próprio mundo ao nosso redor se alterasse e somente as nossas memórias fossem a verdade. Ou talvez seja assim que eu me lembro.

Chamas do Império é sim uma história de guerra, mas é também uma história sobre a memória. Sobre o que a guerra apaga e o que ela relembra. Sobre como um Império se ergue sobre as cinzas dos povos que ele apagou da existência e sobre como esse Império um dia pode também se juntar a essas cinzas.

Somos os últimos guardiões de nossas próprias memórias e é para não leva-las comigo para o outro lado do Mar da Agonia, que eu as escrevo. Alguns dirão que são só histórias, mas para mim são a pura verdade, exatamente como eu me lembro.

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