5ml
On July 19, 2021 | 0 Comments

Era cedo, mas a fila dobrava o quarteirão. Lembrei de outra fila, daquela dos meus sonhos, aquela em que eu as vezes fico preso, caminhando para me tornar carne de salsicha. Essa era o inverso. Gente ansiosa. Pernas nervosas. Olhar no futuro, lá na frente, quase que no outro quarteirão, onde havia alguma luz. Ver a esperança se esgotar era o único temor.

Dezoito meses aguardando pelo fim do medo. As pessoas que saiam eram diferentes das que entraram. A transformação era moral e física. As blusas de frio saiam nos braços, ostentando camisetas de protesto. As vozes soavam altas, contra um governo que passou um ano e meio negociando nossas almas no atacado por um dólar a dose, malditos filhos da puta.

– Cadê os negacionistas da fila? – Um rapaz gritou. – Viva o SUS, caralho!

Uma salva de palmas. Sorrisos deliciados. Princípios de lágrimas e alguma vergonha. A cabeça baixa, o olhar preso no chão. Os lábios estreitos e recurvados como um arco-íris de infelicidade. A blusa fechada até o pescoço, escondendo uma camisa canarinho, ou o retrato de algum torturador armado. Eles estavam lá. Em silêncio, como se o desafio não fosse com eles, longe da segurança da internet.

As vozes soavam altas, contra um governo que passou um ano e meio negociando nossas almas no atacado por um dólar a dose, malditos filhos da puta.

Achei que em algum momento haveria briga. Fiquei esperando que alguém implicasse com a minha camiseta onde uma família de palhaços armados, usando camisa verde-amarela, enalteciam a morte dos pobres para um rebanho bovino. Cheguei a desejar isso. Que tipo de pessoa eu tinha me tornado?

Lá no inicio da fila, uma amiga me reconheceu, sacudindo os braços. Se tem uma coisa que essa era de máscaras nos provou é que identidade secreta só funciona nos quadrinhos. Quando já estava chegando a minha vez, ela saiu com o curativo no braço, abrindo a bolsa para pegar um livro.

– Olha que coincidência! – Me mostrou uma edição do “Teatro da Ira”.

Sorri, um pouco constrangido, mas muito feliz. Era sempre surpreendente descobrir alguém lendo um dos meus livros.

– Demorei para começar, porquê não sou fã de literatura fantástica, mas olha… estou bastante surpresa.

Não podia ficar mais feliz. Ou poderia. Com a vacina no braço. Chegando a minha vez de entrar no posto, nos despedimos. Promessas de nos encontrarmos de verdade em breve. Todos vacinados. Quem sabe sem máscaras. Quem sabe.

Da porta do posto para a sala foi um salto. Eu disparava piadas que deixavam óbvia a minha ansiedade. Não me importava. Na sala em frente, um rapaz recebia a vacina e sorria olhando minha camiseta. Quando nos cruzamos, improvisamos um breve cumprimento, batendo os punhos. A enfermeira riu. Pediu para erguer a manga esquerda. Foi lenta e metodicamente narrando todas as etapas da vacinação enquanto pedia para eu verificar. Lote. Validade. 5ml. Seringa vazia. Eu só queria que acabasse logo. Queria me sentir inoculado contra todo o ódio, o medo, a desesperança. A enfermeira me prometeu alguns efeitos colaterais, mas eu disse que todos seriam bem-vindos, eu não me importava.

Voltei para casa orgulhoso, como se tivesse ganhado superpoderes. Dali a vinte e cinco anos, no aniversário da inoculação, os mais novos me perguntarão sobre os dias da peste e eu espero me lembrar. Não apenas do ódio, do medo, da certeza de que para o desgraçado no comando do país e seu bando, valho tanto vivo quanto morto. Espero me lembrar daquela sensação. Aqueles 5ml de esperança. Viva o SUS! Fora genocida!


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