Um presente aos pássaros
On May 24, 2021 | 0 Comments

Quando minha irmã primeiro se mudou para essa casa onde agora vivo, ela trouxe consigo um limoeiro. Trouxe também outras plantas, vasos, mudas, sementes, que espalhou em cada metro de chão disponível. Tornou uma casinha simples encravada entre prédios, em uma pequena floresta que deixaria meu avô orgulhoso.

Quando se mudou para a sua nova casa, antes de me deixar no seu lugar, levou tudo o que estava em vaso, mas deixou para trás a jabuticabeira que já pertencia a casa e o limoeiro que havia trazido, um pedaço dela como presente para a casa.

Meu avô ficaria orgulhoso. Ele que ganhava o pão, remexendo a terra e tinha uma alegria imensa em ver a vida prosperar, em jardins e hortas, vasos e plantações. Amor que passou para minha mãe e minha irmã.

Enquanto vivia com meu avô, aprendi com ele a amar as plantas, mas pulei as lições sobre como cuidar delas. Ele ficaria decepcionado com a facilidade que tenho para deixar as coisas morrerem. Eu e Ricardo Salles, dois mestres da devastação, acumulando corpos vegetais secos pelo nosso caminho, como verdadeiros assassinos em série. Ele por dolo, eu por culpa. Eu por uma inabilidade atroz, ele por uma ambição voraz.

No apartamento de 47 metros que deixei para trás, ficou o espírito de uma centena de minhas vítimas. Pés de hortelã, manjericão, tomilho, um sem número de suculentas, pimenteiras, orégano e sálvia. Um pequeno cemitério de cactos, que ganhei de presente, com a certeza de que a esses eu não conseguiria matar e que eu lenta e progressivamente assassinei, com água de mais ou de menos, jamais saberei. Se soubesse do que eu era capaz, meu avô, coitado, me daria uma surra.

Foi estranho deixar o apartamento para trás. Poder me sentar no chão da varanda e sentir o sol no rosto. Sentir o cheiro das folhas do limoeiro ou acompanhar com interesse enquanto as jabuticabas escureciam grudadas ao tronco. Quando a chuva caiu pela primeira vez molhando a terra, lembrei da horta onde meu avô passava as tardes e resolvi tentar não decepcioná-lo de novo. Era o mínimo que eu podia fazer agora que havia chão e chuva sob os meus cuidados.

Na feira encontrei uma pimenteira roxa, hortelã, manjericão e alecrim. Já estava indo embora quando me apaixonei por um pequeno pé de amora, magro, meio torto, já carregado de frutos grandes demais. Com esperança e um pouco de culpa, eu o trouxe para casa.

Um dia – daqui a muitos anos, espero – quando deixar para trás esse pequeno paraíso, os pássaros pousarão nos galhos mais altos destas árvores, comendo os frutos que as crianças não alcançaram. Eles não saberão meu nome, ou o nome da minha irmã ou meu avô, assim como nós não sabemos o nome do primeiro de nós, aquele que plantou a jabuticabeira, mas isso não muda o doce da fruta, nem o cheiro das folhas, ou a sombra dos galhos. Um dia quando minha irmã e eu nos encontrarmos com meu avô, espero que ele sinta orgulho de nós, assim como os pássaros são gratos às árvores que lhes dão frutos.

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