Saturno Faminto
On April 12, 2021 | 0 Comments

Na minha imaginação, Saturno faminto devora o próprio braço, embora eu saiba que não é isso o que a mitologia diz.

Sempre que me encontro com algum amigo do passado, me dou conta da estranha relação que tenho com o tempo a minha volta. Enquanto a conversa passeia por tudo o que aconteceu “naquela época” e tenta rastrear o vazio que ficou entre o lá e o agora, custo a entender do que a pessoa esta falando. Faço contas, traço linhas imaginárias, desenho mapas intrincados de possibilidades e labirintos esquizofrênicos sobre realidades paralelas que esfarelam ao menor toque. Ainda assim: nada.

Foi só recentemente que me dei conta deste estranhamento. Era uma terça-feira qualquer e eu estava bastante ansioso quando encontrei uma colega no fórum, para uma das audiências do interminável processo contra a empresa em que trabalhei por quase dez anos. Jogado numa das cadeiras de espera, olhava o relógio torcendo para que aquela fosse a última vez que eu estaria ali. Não foi, nem a última, nem a quinquagésima.

Sorrindo, com o mesmo jeito simpático de sempre, falando rápido e muito alto, a minha colega entrou esbaforida no fórum, pedindo desculpas pelo atraso e explicando como foi difícil chegar e estacionar. Dei risada, imaginando-a dirigindo com seu jeito meio desesperado de ser, e ela comentou como era engraçado me ver depois de tanto tempo com a mesma bolsa carteiro no ombro.

Saturno, faminto, devora o próprio braço, embora eu saiba que não é isso o que a mitologia conta.

Para ser sincero, acho que não era a mesma bolsa, mas provavelmente era uma bastante parecida – gosto de bolsas carteiro pois deixam os livros sempre a mão enquanto me penduro no transporte publico – mesmo assim, o comentário disparou uma série de perguntas dentro da minha cabeça que tentava localizar do que diabos ela estava falando. Para mim, havíamos trabalho na mesma empresa até o mês passado. Eu ainda lembrava do último projeto que havíamos feito juntos e podia comentar sobre a conversa que havíamos tido durante o almoço. Estava tudo lá na memória como se tivesse acabado de acontecer, mas para ela já tinham se passado quatro anos.

A partir daquele dia eu comecei a compreender algumas coisas.

Einstein dizia que o tempo é relativo e não corre da mesma forma para todos, o que explicaria o que acontece comigo na teoria, mas não na prática, já que não tenho velocidade ou massa o suficiente para garantir uma distorção temporal (apesar do que diz meu cardiologista).

Para Phillip K. Dick, o tempo é uma ilusão e tudo acontece no agora, sendo limitado apenas pela nossa percepção. Neste exato momento eu estou escrevendo essa crônica, estou lendo o que foi escrito, estou sofrendo por não ter nenhuma ideia do que vou escrever, e estou me lembrando de quando escrevi tudo isso no segundo ano da grande pandemia, antes da chegada dos deuses do espaço.

Essa dificuldade que eu tenho de ver o tempo de forma linear talvez explique porquê não consigo entender como um prédio surge do dia para a noite, como alguém trocou de namorado de novo, ou porquê alguém ri, quando respondo uma mensagem depois de três anos, ou desejo feliz aniversário três vezes no mesmo mês.

É com assombro que vejo meus sobrinhos crescerem; com descrédito que vejo os cabelos brancos tomarem a cabeça dos meus pais. Cada vez que pisco os olhos, perco dois mil segundos e eu não sei para onde eles vão.

O mesmo acontece com amigos e parentes. Eu os encontro com a naturalidade de quem acabou de ir a cozinha e volta com um copo d’água e muitas vezes não entendo a quantidade infindável de perguntas sobre o que mudou ou permanece o mesmo.

Isso também explica minha dificuldade em manter contato com as pessoas. Eu tento, juro que tento, mas as horas se transformam em dias, os dias em semanas, semanas em anos; e existe o sério risco de eu mandar uma mensagem perguntando se está de pé a cerveja naquele fim de semana, mesmo que o fim de semana tenha acontecido duas décadas antes.

É com assombro que vejo meus sobrinhos crescerem, com descrédito que vejo os cabelos brancos tomarem a cabeça dos meus pais.

Não estou procurando justificativas. Entendo o quanto isso faz parecer que não me importo ou que não valorizo ninguém. Deve ser frustrante ser meu amigo e tentar acompanhar essa minha estranha bolha temporal, mas a verdade é que eu me importo muito. Tanto que guardo as pessoas ao meu redor em pequenos retratos de memória que estou sempre visitando. Uma galeria de recordações que torna cada pessoa que conheci viva, cada minuto eternizado.

Tenho em mim todas as pessoas com quem sorri, chorei, briguei e sonhei e tudo isso aconteceu conosco ontem. Estão tão vivos em mim que as vezes não me dou conta do tempo que estou perdendo enquanto as pessoas se distanciam.

Sei que parece triste, provavelmente é mesmo um pouco, mas também tem algo de bonito. Estou neste exato momento pegando carona com uma caravana new age para conhecer a Chapada dos Veadeiros. Estou sentado no meu escritório puto da vida com o cliente que ainda não me pagou. Estou na beira da praia, olhando o horizonte e escolhendo as palavras certas para os meus votos e deitado no divã da minha terapeuta tentando me perdoar por tudo o que eu fiz de errado. Estou voando por cima das pessoas da pista de dança, com luzes coloridas girando ao meu redor, enquanto a música fica lenta e eu penso que pular do mezanino foi uma péssima ideia e estou passeando de canoa através dos mangues em Porto de Galinhas, prestes a ver o por do sol mais lindo da minha vida, agarrado aos dedos da minha namorada, torcendo para que aquilo nunca acabe.

Tenho em mim todas as pessoas com quem sorri, chorei, briguei e sonhei e tudo isso aconteceu conosco ontem.

Tudo isso está acontecendo agora em mim. Bons e maus momentos. Gente que eu amo e odeio. Amigos que ganhei e perdi. Pessoas que me emocionaram e me decepcionaram. Todos vivem em mim em suas diferentes versões, todos ao mesmo tempo, em um fluxo constante de sentimentos que se misturam fazendo ainda menos sentido. É exatamente assim que eu sinto.

A quanto tempo estou aqui? Escrevi tudo isso dez minutos atrás? Dez dias? Dez anos? A vida é uma colcha de retalhos feita com as lembranças que nós guardamos e tenho todo mundo na minha memória. Como se fosse ontem. Como se estivesse acontecendo agora. Eu sou Saturno, que devorou os filhos e devoraria o mundo, para que todos vivessem dentro de si, antes de se devorar e recomeçar tudo novamente.

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