Cobertas
On November 23, 2020 | 0 Comments

Roubaram as cobertas do mendigo. Sim. Sei que o certo seria dizer “pessoa em situação de rua”, mas se você se pegou nessa questão é porquê não entendeu o que eu acabei de dizer. Com o frio que está fazendo, um rapaz bastante sujo, tentava se aquecer com as mãos enfiadas no meio das pernas, deitado sobre papelão em posição fetal.

Estava frio, começava a chover, eu parei para tomar um café em uma barraquinha e conversar com os outros fregueses. De tudo um pouco, trabalhadores de escritório, vendedoras de loja, domésticas, pedreiros, vendedores de farol. Todos se aquecendo com um cafezinho, um pão de queijo duro ou pão com margarina já passada. Foi a vendedora que me apontou o rapaz encolhido do outro lado da rua.

– Roubaram o cobertor dele essa noite.

Achei que não tinha entendido direito. Depois achei que ela estava enganada. Por fim imaginei se era alguma ação esquisita da polícia que, aqui em São Paulo, não é muito fã de sem-teto, padres ou candidatos que tentam devolver a dignidade as pessoas. Então me dei conta do frio e da chuva e dos inúmeros moradores de rua que se escondiam sob cobertores e barracas improvisadas de papelão, sob toldos e marquises de lojas que ainda estavam fechadas. Aquele sim era um mundo cão.

Quem tinha roubado o cobertor do rapaz era, muito provavelmente, outro morador de rua como ele. Algo muito diferente de um casal que briga pela coberta em uma cama confortável, sob um teto que detém a chuva, com a porta fechada que prove segurança e paredes que cortam o vento. Imagine o desespero necessário para alguém, no meio da noite, privar outra pessoa do seu único conforto que ainda lhe resta: um cobertor fino sobre a cabeça.
Tinha uma jaqueta em casa que não me servia mais. Daqueles itens que você guarda por teimosia, mesmo sabendo que seu tempo passou. Resolvi buscá-la. Aproveitei para revirar o armário em busca de um cobertor, mas na verdade eu não tinha muitas opções. Tinha, porém, uma velha manta que minha mãe havia dado para cobrir o sofá. Um troço pesado e cheio de buracos que deveria dar vergonha de oferecer a outro ser-humano, mas que era grossa e podia ser dobrada e usada como colchonete. Era pouco. Muito pouco. Terrivelmente pouco.

Precisei acordar o rapaz para lhe entregar as cobertas. Ele se levantou assustado. Tremia. Vestiu a blusa enquanto eu me desculpava pelo estado da colcha, não sei se ele realmente me ouvia. Foi só se agarrando aos panos, como um naufrago nos destroços de um navio.

Cheguei em casa, me servi de café quente e me sentei para escrever tudo isso, enquanto as memórias ainda não esfriaram. Entrei na internet para comprar uma ou duas cobertas para uma emergência como essa. Minha compra foi recusada. O cartão de crédito ainda não virou.

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