Escreva!
On March 15, 2019 | 0 Comments

As vezes o mundo ao redor é tão sombrio que fica difícil escrever alguma coisa. Nesses dias: escreva. Escreva sobre o que você sente, sobre o que tem dificuldade de sentir, sobre como tudo isso te incomoda. Escreva sobre a tristeza que é se refugiar nas palavras, como forma de calar o barulho do mundo a sua volta, ao menos um pouco.

Nos últimos tempos escrever tem se tornado o único momento desperto que eu tenho diante do pesadelo que se tornou a realidade. É o momento em que estou no controle, em que as ideias são claras e ainda existe alguma esperança dos vilões serem derrotados. Quando paro um minuto para esticar os dedos, estalar o pescoço, tomar uma água, a realidade me alcança e dois homens invadem uma escola despejando o ódio do mundo em uma saraivada contra crianças. Moloque se embebeda com o sangue que mais cobiça.

Quando uma tragédia como essas acontece, tudo o que fazemos parece tolo e desnecessário. Aquele seu problema de plot perde a importância. Aquele capítulo que não acaba se torna completamente supérfluo. O protagonista com quem você vinha lutando, senta no chão e desiste. Resta a sensação de que você está cobrindo o mundo com um véu, na esperança que um lençol possa impedir os tiros. O mundo ao redor te agarra sugando seus sonhos com manchetes sangrentas de jornal e piadas de mal gosto na internet, mas mesmo assim escreva.

Em dias assim, vai ser difícil se concentrar. As palavras vão parecer truncadas e fora de ordem, como um quebra cabeças que você precisa montar no escuro. Os versos vão desaparecer na praia, como a espuma do mar, enquanto você fica tentado a se sentar para observar a gigantesca onda que se eleva para te dragar. Mesmo assim: escreva.

Não será o mundo o primeiro a tentar te calar. Será aquela voz que te faz duvidar, dentro de sua cabeça. Aquela que diz querer o seu bem e que irá lhe afagar as mazelas, te convencendo de que amanhã será um dia melhor, que amanhã o mundo não vencerá, amanhã as palavras serão abundantes, como maná no céu do deserto da vida. Ela te convencerá de que tudo parece superficial e insípido agora e você vai ser tentado a deixar o caderno de lado e dormir, para amanhecer em um dia melhor, onde as palavras fluirão. Com um sorriso, a voz lhe dirá para se despedir da página em branco, dando a ela a vitória daquele batalha e te jurando que amanhã você vencerá a guerra. Amanhã! Hoje, apenas um filme para desligar o cérebro e não pensar na vida. Apenas uma leitura para não se lembrar do mundo. Hoje você pode se apoiar nos ombros daqueles que não desistiram e fizeram do próprio véu uma capa de levitação, um colete a prova de balas, um manto de invisibilidade para proteger a humanidade. Gigantes que enfrentaram a realidade e venceram.

Quando a voz começar a dizer para você esperar até estar se sentindo melhor, ignore-a e escreva. Bata nas teclas com tanta raiva que parecerá que você está tocando piano. Aperte o lápis com tanta força que as letras cavem uma trincheira através das páginas. Recite em voz alta cada palavra, cada linha, cada grito raivoso e sem sentido, empurrando com o poder do próprio ódio as sombras do mundo de volta para o buraco de onde vieram. Levante-se e lute, como se você fosse o último soldado. Transforme os parágrafos em sua barricada e resista! Escreva! Escreva mesmo que não faça nenhum sentido, mesmo que o amanhã revele que tudo parece uma merda. Escreva como se disso dependesse o próprio ar de seus pulmões. Em pé no ponto do ônibus, na fila do banco, no intervalo do almoço, no fim da reunião. Escreva com brutalidade e desaforo para afrontar a própria realidade. Transforme a sua insignificância em sua maior força, invadindo o contexto do mundo com a verdade que só a arte consegue provar. Agarre cada grito de ódio, cada lágrima de tristeza, cada sensação de impotência e negligência e enfie fundo na garganta deste mundo de merda, até sentir o punho no vazio do seu estômago. O cotovelo travado em seus dentes. Escreva para tomar de volta o controle de seus pensamentos e se vingar da realidade que nos trata como merda.

A  história já demonstrou que a opressão começa quando os artistas são calados. Nos tempos em que vivemos todas as palavras são uma forma de resistência. O silêncio é pura covardia. Escreva!

Leave a Reply

More news