O guardião do portão
On January 4, 2019 | 0 Comments

Quem passa apressado pela rua Francisco Leitão pode acabar notando o gnomo de jardim que guarda uma misteriosa porta de ferro, na altura do número 200. Espremido entre uma galeria de arte e uma clínica homeopática, o sentinela gasto pelo tempo, se esconde entre uma profusão de heras, protegido pelo portão as suas costas e uma grade de ferro a sua frente. Um espaço ínfimo até mesmo para uma criatura de suas proporções.

Poucos o percebem em sua guarda. Eu mesmo só vim a nota-lo nos passeios com a minha cachorra, que dia sim, dia não, para diante da estátua e late efusivamente, como a desafiar seus domínios antes de se abaixar e esvaziar a bexiga na calçada a sua frente.

A lógica exterminou sem muito esforço qualquer sombra de curiosidade, concluindo que atrás daqueles portões havia um corredor de acesso a qualquer uma das lojas ao seu lado, um espaço de serviço para não se tirar o lixo na frente dos clientes, então deixei de pensar no portão de ferro e seu guardião, exceto quando precisava promover a paz entre minha cachorra e o gnomo.

Assim seguimos. Até que um dia alguém saiu pelo portão.

O alerta, como vocês devem imaginar, partiu da minha cadela, que cumpriu seu ritual, latindo para o gnomo com toda valentia dos seus dez quilos de pelo sedoso. Abaixado na calçada, eu tentava convencê-la de que era só uma estátua e que estava tudo bem, quando ouvi um ferrolho batendo contra o ferro e o rangido característico de dobradiças enferrujadas permitindo a passagem de alguém. Confesso, sem vergonha alguma, que o susto me fez cair sentado no chão, o que distraiu minha cachorra tempo o suficiente para o senhor sair pela porta sem ser incomodado.

Ele parou a minha frente, enquanto eu me levantava, educadamente ignorando a minha vergonha e acenou com a cabeça um bom dia baixo antes de se virar e descer a rua no sentido da qual eu havia vindo.

A porta, novamente trancada, me negava a sua origem, mas o simples contato com aquele senhor, pinicou no fundo da minha mente a curiosidade sobre o que haveria do outro lado. Que outros mundos estavam sendo guardados por aquele gnomo. A passagem para Nárnia, o País das Maravilhas, Lagoena, O castelo das águias ou o Império de Diamante. Certamente o senhor que atravessou aquele umbral era um mago poderoso, transvertido em vestes mortais para se esconder entre os mundanos. As vezes a imaginação ia para lugares mais longínquos, com portais extraterrestres, outras mais assustadores, como calabouços ocultos onde escravos eram torturados até a morte para saciar o sadismo de ricos. Não parecia que iria haver uma resposta.

Então, sem qualquer outro aviso, a clínica homeopática foi derrubada. Um dia ela estava lá, no outro era um estacionamento com o chão forrado de brita e uma placa anunciando vagas para mensalistas. Uma das probabilidades da origem daquele espaço havia sido eliminada, mas uma ainda mais estranha passou a coçar minha curiosidade quando percebi que o estacionamento me permitia ver todo o muro que acompanhava aquele portão margeando a galeria de arte que permanecia de pé, tomada pelas trepadeiras e pontilhada por pequenas árvores frutíferas, mas o corredor não acabava ali, ao invés disso continuava pelo interior do quarteirão, chegando ao que parecia uma vila escondida atrás dos prédios maiores.

A existência de uma vila como aquela não era assim tão estranha. O bairro era lotado daqueles espaços, ruas que se fecharam por não chegar a lugar algum e que tinham sido estrategicamente tomadas como patrimônio privado. O estranho, naquele caso, era o seu acesso bizarramente limitado. Um portão fechado e outro feito de grades de ferro, com um chão de paralelepípedos e um gnomo escondido em um dos cantos. Era como se o portão fosse feito para não ser usado como muita frequência, mas então por onde entravam aquelas pessoas? Assim que me fiz essa pergunta, me dei conta de que, sendo uma vila, provavelmente existiriam outros moradores, ainda assim aquele portão só se abriu uma vez na minha presença.

Outro dia eu dividi com a minha mãe o mistério daquele lugar. Nós passamos na sua frente, olhamos a lateral do estacionamento e acabamos, inadvertidamente, chamando a atenção do vigia que tomava conta dos carros. Ele se aproximou sorrindo, falando rápido e de muitas coisas ao mesmo tempo, mas entre uma informação desencontrada e outra, ele disse que o estacionamento era provisório e que todo aquele espaço, junto com as casas vizinhas, iriam se tornar um hotel em breve. Quando tentei perguntar sobre a vilinha que ficava na parte de trás, ele fez cara de que não entendeu a pergunta e voltou a falar sobre o hotel, os carros e outras coisas que mais pareciam uma língua desconhecida, tudo tão confuso que eu precisava traduzir para a minha mãe os trechos que eu conseguia compreender. Sobre a vila, não sabia dizer nada.

A notícia me deixou apreensivo. Talvez em alguns meses, talvez em alguns anos, o portão de ferro e seu guardião desapareceriam e com ele desapareceria todo o mistério envolvido naquele lugar. Era uma história que não teria fim. Seria tragada pelo progresso.

Sou eu quem para diante do portão agora, mesmo quando minha cadela está apressada e sem o menor interesse em latir para o gnomo de jardim. Hoje, enquanto praticávamos esse ritual eu me dei conta do que aquele portão realmente escondia, o que aquele gnomo sorridente e descascado pela vida guardava com tanto empenho. Não importava, realmente a resposta. Eram as perguntas que tornavam aquele pedacinho de mundo mágico. Aquele era o lugar onde se escondiam todas as histórias não contadas.

Talvez seja por isso que eu esteja escrevendo essa história. Para quando os tratores começarem a trabalhar e o gnomo finalmente for vencido em sua guarda corajosa, o portão e seus mistérios possam continuar existindo dentro da mente de cada leitor, se abrindo para histórias que ainda não foram contadas, cuja chave cada um carrega em sua própria curiosidade. Talvez seja isso.

Ou talvez o gnomo e seu mestre continuem lutando contra uma grande corporação para proteger o último portão para terras mágicas, muito além do tempo e da geografia como a conhecemos. Tudo é possível.

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