Boazinha
On May 18, 2018 | 0 Comments

Passear com o cachorro é um exercício de convivência. Duas vezes ao dia você anda pela rua forçado a interagir com toda espécie de animal da fauna humana. Esta manhã não foi diferente. Lavei o rosto, deixei minha namorada na estação de metrô e seguimos em frente para os compromissos intestinais do dia.
Meg, a vira-lata dublê do Benji, cujas raízes socialistas remontam o acampamento do MST, tem alguns hábitos arraigados. Cheirar toda e qualquer sacola; correr atrás das pombas; latir para bicicletas e cagar na frente da agência do Itaú as 18:30 demonstrando seu desprezo pelo sistema. No restante ela anda erradica como qualquer um.
Pela manhã o passeio consiste em descer a rua dos Pinheiros se desviando da imundice geral em que se encontra a rua no último ano, entrar na Simão Alves torcendo para ela não se esfregar na carniça empoçada que fica apodrecendo depois da feira a semana toda e subir a Arthur de Azevedo, latindo para as bicicletas e lutando ferozmente contra seu ímpeto de engolir ossos de frango largados pela calçada.
Como ontem tinha sido dia de feira, prevendo metade da confusão, mudei o trajeto, resolvido a encarar as ladeiras da Vila Madalena, surpreso com um cartaz que anunciava caipirinha R$5,00 em uma esquina. Uma verdadeira barganha no bairro, não importando que tipo de veneno estaria sendo misturada com limão. Meg seguia seu trabalho de exploração, cheirando a tudo e decidindo o que valia ou não a pena engolir antes que eu percebesse, mais rápida do que qualquer aspirador construído pelo homem. Seguia com vontade, as vezes parando para alguns cães, outras vezes ignorando-os como se não fossem dignos de sua cheirada.
Assim como todos os dias, eu a seguia intercalando os pensamentos sobre os compromissos do dia e lendo uma matéria longa sobre as eleições no celular. Vez por outra parando diante de uma casa ou um prédio que não tinha percebido antes, naquele sonho classe média da casa própria. Na volta, um bom dia para um dos moradores de rua que se tornaram comuns nos últimos meses, e já estávamos quase na nossa zona de segurança que conhecíamos bem, bastando para isso uma última interação social.
– É bonzinho? – A garota me perguntou quando o cachorro dela se aproximou da Meg e a pergunta me pegou de surpresa.
As vezes uma pergunta simples tem uma resposta complexa e eu divaguei sobre o sentido da bondade, conformismos, adequação social e a defesa de suas necessidades. Meg, cuja oratória tem um vocabulário simples e uma mensagem clara, foi mais direta, latindo para o pobre cãozinho, até fazê-lo se embolar nas pernas da mulher que olhou para mim cheia de recriminação. Suspirei, confessamente cansado, e pedi efusivas desculpas pelo susto, pronto a seguir meu caminho apesar da luta da minha cadela contra suas correntes. A garota, porém, não estava satisfeita.
– Você tem que avisar quando o cachorro não é sempre bonzinho.
Abri a boca com um palavrão pronto, lutando contra minhas próprias correntes, mas voltei a responder. “Você tem razão, me desculpe!”
– Sim, mas você tem que avisar quando o cachorro não é sempre bonzinho.
Fiquei pensando no que mais ela queria ouvir além de “me desculpe, você tem razão”, o que seria suficiente para ela calar a boca e seguir o seu dia. Que bom seria se as pessoas também avisassem que não são sempre boazinhas. Quem é semprebonzinho nessa vida? Naquele momento, por exemplo ouvia o animal em mim latindo uma resposta malcriada que a faria voltar para casa chorando. Ela, como outro exemplo, era outro animal feroz defendendo a matilha com determinações sobre o que achava ou não achava correto. Teria sido bom se ela tivesse me avisado que não era boazinha, que tinha acordado de mal-humor, que se sentia no direito de dar sermão ao invés de se contentar com três pedidos de desculpa e ir para casa sem azedar o dia de ninguém. Infelizmente não era tão simples, nem para cães, nem para os animais humanos e existem dias que você precisa sair de casa com uma focinheira para não correr o risco de morder um desavisado na rua.
A meg aceita a maioria dos cães, mas tem um faro infalível para gente babaca. Não, a Meg não é sempre boazinha. Nem eu.

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