Coroa de Chamas
On January 7, 2014 | 5 Comments
Flame Fire Burn Hot Shining Heat
Myriams-Fotos / Pixabay

O som das explosões enchiam o ar, sufocado pelo barulho das ondas que batiam contra a praia e devoravam com uma paciência milenar os milhares de cacos espalhados pela areia branca. Em resposta ao barulho das espadas que se chocavam do outro lado das colinas, o gigantesco mar de água doce rugia correndo para o sul, vigiado por aves de pernas compridas e bicos afiados que fugiam apressadas.

Ao oeste ficavam as colinas. Ao oeste ficavam os passos que Athorius e seu povo haviam deixado pelo seu caminho. Ficava Lielle, a cidade de seu pai. Ficavam os campos de batalha. As piras funerárias. O inimigo que jamais desistia. Ao oeste ficava o passado e seu passado era a morte certa.

Os mais velhos batizaram aquele pedaço de areia preso entre rochas e mangues de Praia das Lágrimas e Athorius achou coerente com o que sentia àquela hora. Enquanto limpava o sangue de suas mãos, pensava nos corpos que tinham se espalhado pela sua estrada e nas fogueiras que haviam consumido a cidade de Lielle. Tinha saudade de um lar que não havia conhecido e cuja verdadeira ausência não podia precisar.

O acampamento seguia sua rotina, completamente alheio ao que acontecia do outro lado das colinas. O inverno havia começado e os ficavam mais curtos e frios. Os garu tinham fechado o cerco sobre eles, encurralando-os na margem do rio, mas ninguém ali parecia se importar. Athorius olhava ao redor com um misto de orgulho e desespero. Aquelas pessoas talvez estivessem vivendo as últimas horas de suas vidas e pareciam simplesmente não ligar.

Seu filho Ithan, corria em zigue-zague pelas pernas dos cavaleiros fantasmas, atrás de uma garota com um caranguejo entre os dedos e Athorius sentiu inveja de sua inocência. Quando ele tinha a mesma idade, já fazia mais de duas décadas que a longa marcha havia começado e as batalhas contra os garu ainda eram uma cicatriz na memória do seu povo. Seu pai guiava a todos com os punhos de um general, entre marchas e lutas. Mas aquilo fazia tempo o suficiente para o rosto do seu inimigo se tornar uma bruma nas memórias de Athorius e para que seu filho pudesse crescer sem maiores temores. Agora o inimigo os havia encontrado.

As fogueiras estavam sendo acesas na parte mais alta da praia, onde as árvores os protegiam do vento. O tecido das tendas sacudia diante da fraca brisa, pessoas andavam apressadas de um lado para o outro, sempre ocupados. Dois construtores faziam desenhos e cálculos complexos sobre uma planta, pensando em uma forma de levar vinte cinco mil almas através das águas, para a segurança.

Um homem ensinava o seu filho a controlar um dos vinte e oito cavaleiros fantasmas que ainda existiam. A armadura comida pela ferrugem rangia e estalava enquanto eles faziam seu braço se mover.  Dois dedos da mão esquerda haviam caído e uma grande fissura sobre o ombro direito tinha sido remendado com um pedaço de ferro ordinário. O garoto se esforçava para fazer o cavaleiro virar a cabeça de um lado para o outro, enquanto o homem lhe dava instruções.

Athorius esperou até que o cirurgião costurasse sua perna esquerda e o colocasse de pé. Ele deveria lhe sugerir que ficasse em repouso, mas aquilo teria sido em vão. Os inimigos haviam recuado, mas todos sabiam que aquilo não poderia durar muito. Se havia alguma esperança, não era na paz. Afastou-se da margem procurando algo para comer.

A multidão se espalhava do mangue que ficava ao norte até as pontiagudas pedras negras que os protegiam pelo sul. A fome já havia se espalhado pelo acampamento, uns poucos caranguejos e peixes não eram suficiente, mas seu povo nunca reclamava. Alguém começou uma canção lamuriosa e quase que imediatamente outras tantas vozes se uniram ao coro, uma tradição que se repetia a quarenta anos, enquanto eles iam se aproximando do centro da praia.

– O que eles estão cantando hoje, meu pai? – Ithan pareceu se materializar ao seu lado, agarrado a sua mão, com os mesmos olhos castanhos que tinha a sua falecida esposa. – Eu não conheço essa música.

– Estão cantando sobre o reino prometido. Sobre a terra do outro lado. A promessa que nos foi feita. – Mentiras. Ele teria completado, mas não achava que aquilo fosse fazer qualquer bem ao seu filho.

Ithan olhou para a grande fogueira que começava a arder na parte alta da praia e para a figura de um braço só que parou diante dela com os olhos presos nas chamas. Instintivamente apertou com mais força a mão de seu pai. Athorius lamentava que seu filho tivesse tanto medo do próprio avô, mas não podia culpá-lo por isso. Brathus era uma figura amedrontadora, mesmo aos mais velhos.

As vozes dos allarini foram aumentando a medida em que eles se amontoavam diante da fogueira. “pelo mar de água doce, lavado o pó, lavada a mágoa, Karis, abençoada, coração aberto ao fim da estrada.” Athorius viu Haena, sua mãe, somando sua voz a canção, mas escolheu ficar onde estava, entre o povo. Apenas outro desgarrado. Um príncipe sem reino.

– Pai, o que é Karis?

Athorius olhou para o filho e sorriu. Karis era uma promessa de felicidade. Algo que eles haviam abandonado quando deixaram suas casas e levaram seus filhos para o leste. Abriu a boca para responder, bem no instante em que a musica parou. O silêncio estalou ao seu redor como a madeira da grande fogueira, mesmo o barulho da batalha pareceu se perder, enquanto milhares de olhos se voltavam para Brathus. Seu pai já era um ancião. Haviam poucos entre o seu povo que o ultrapassavam em idade. A maior parte dos adultos que haviam abandonado a decadente Lielle haviam alimentado as fogueiras pelo caminho. As crianças que haviam sido levadas pelas mãos através do portão da cidade já eram adultos com filhos e netos.

Viúvos, órfãos, pais e mães de luto, eram a bagagem comum de suas carruagens. Todas as noites as fogueiras se acendiam para receber seus mortos. Pela manhã, suas cinzas eram recolhidas para moldar seus ídolos. Seus nomes eram ditos em voz alta e a caravana seguia adiante. Athorius, Anthoar, Liena, Nahas. Três irmãos, uma esposa. O fogo era implacável.

– Quarenta anos. – A voz de Brathus ecoou pelo ar com um sussurro que ninguém podia ignorar. Ithan e outras crianças gemeram, mesmo Athorius sentiu um desconforto quando a mente de seu pai reverberou em sua caixa craniana. A sensação durou um instante. – Hoje a profecia faz quarenta anos. A estrada foi longa e as fogueiras famintas.

Duzentas mil almas deixaram Lielle, vinte e cinco mil chegaram a Praia das Lágrimas.

Athorius conhecia as perdas. A doença, o cansaço, os perigos e as batalhas constantes haviam devorado os homens do oeste através dos anos, endurecendo-os como aço. Eles se estilhaçariam antes de se curvar. Era esse seu maior medo.

– O inimigo finalmente nos alcançou. Bem aqui. Onde nós vamos encontrar aquele que nos guiará ao fim da jornada. Ao reino prometido. Bem aqui, nas areias feitas da lágrima dos antigos, nós vamos encontrar o nosso futuro. Eles sabem que estão prestes a nos perder de uma vez por todas. Eles sabem que quando atravessarmos estas águas. – Brathus parou e olhou ao seu redor. – Nunca mais sentiremos medo. Nós somos os herdeiros de Lielle! Nós não vamos morrer aqui!

Athorius ouviu outra vez a antiga promessa em meio ao bater de palmas das pessoas ao seu redor. Ele não pode segurar o esgar de desdém, certo de que a multidão o manteria no anonimato, mas Brathus tinha um olhar afiado e sua mente, mesmo manca por causa da idade, ainda podia alcançá-lo mesmo entre tantas mentes.

Athorius o sentiu deslizar pelos seus pensamentos e soube que havia cometido um erro. Todas as crianças do acampamento pareceram olhar para ele. Ithan apertou forte a sua mão e então outras pessoas começaram a se virar. A herança de Lielle corria pelo sangue de quase todos eles, embora em alguns aquilo não fosse mais do que um sexto sentido, outros podiam levar suas mentes muito além do seu corpo, eram todos áugures, de uma forma ou de outra. Com a redução do seu povo, a herança parecia ganhar força nos descendentes.

Brathus não vacilou em nenhum instante do seu discurso.

– Quarenta anos atrás, fui acordado por uma visão de fogo e destruição. Olhando pela janela, vi Lielle queimando enquanto um navio negro atravessava o ar. As altas torres brancas ruíram, a grande biblioteca virou pó. O farol de Lielle se apagou para sempre. Seu povo gritava por misericórdia, mas eram consumidos pelas chamas. Lielle morria. Somente as crianças eram poupadas para um futuro ainda mais sombrio, enquanto o Tsagoe alimentava a sua fome. – Os mais velhos, aqueles que quarenta anos antes haviam visto as belezas de Lielle, não puderam conter suas lágrimas. Aos outros Brathus simplesmente projetava suas próprias memórias. – Lielle estava condenada.

Os eruditos diziam que haviam um milhão e meio de almas em Lielle quando ela foi invadida pelas forças do Tsagoe. A resistência foi corajosa, mas não tinha a menor chance contra o estranho exército que o feiticeiro havia trazido de além mar. Os garui eram um povo pequeno, mas vinham equipado com máquinas que nem mesmo os melhores engenheiros de Lielle podiam compreender. Gigantes de ferro e fumaça, balistas capazes de derrubar exércitos inteiros, carruagens que surgiam do chão como toupeiras, atravessando a pedra e o tijolo, navios que flutuavam pelo ar, ribombando trovões que destruíam as mais poderosas torres. Lielle não teve chance.

“Não tema pelos seus – O Arauto me disse na visão. –, nem pelos que estão contigo. Pois lhe foi reservada uma nova terra, onde construir seu lar. Lá seu sangue reinará por muitos séculos. Uma longa jornada se inicia essa noite e os anos voarão antes que a paz os encontre. Você precisa levá-los pela estrada do leste, em direção a estrela que nunca se move. De onde seu povo surgiu e para onde ele deve voltar.”

Os anais diziam que Brathus fez o possível para alertar o seu povo, mas a arrogância fora coroada como rei, na cidade de Lielle. Para salvar aqueles que haviam acreditado em sua profecia, Brathus e Haena lideraram uma rebelião para deixar a cidade, trazendo consigo o maior tesouro que ela possuía e assim, talvez condenando-a a morte.

Athorius viu seu pai se apagar, arrastando os pensamentos de volta para o fundo da própria mente. Com o canto do olho, ele avistou Haena se  aproximando com uma almofada coberta por um lenço dourado. Athorius sentiu seu coração disparar. A multidão prendeu a respiração em silêncio absoluto. Mesmo as crianças pareciam antecipar o que estava por vir.

A majestosa Haena. Vestindo sua armadura completa, feita de ferro escuro com filigranas do mais reluzente ouro; espada na cintura e os olhos cheios de cólera. A furiosa Haena que o amava por ser seu único filho e o odiava por ser seu único filho. A inflexível Haena. “Não venha me falar de amor. Você tem uma obrigação com o seu povo. Um príncipe não tem direito algum de amar!

Athorius sentiu o temor na mente de Ithan e tentou acalmar o filho. Trocou um sorriso tranqüilo com o garoto, prometendo que tudo logo ficaria bem. Estavam presenciando um evento único.

Haena se ajoelhou diante do seu marido estendendo a ele o travesseiro coberto. Brathus olhou para o povo ao seu redor. Vinte e cinco mil almas pareciam em transe, dominados pela expectativa. Estendeu a mão até o lenço dourado e o puxou de uma única vez.

A luz da fogueira cintilou nas pontas do cristal negro da coroa, arrancando um suspiro daqueles que estavam a sua frente. A quarenta anos a Coroa de Chamas fora trancada em sua arca, sem que ninguém além de Haena pudesse colocar seus olhos sobre ela, mas ali estava. Esculpida, ou moldada, em uma única peça de quartzo, tão negro quanto a noite, na forma de uma pequena labareda que havia queimado em círculo. Sua aparência era frágil, mas sua presença era ameaçadora. Haena se ergueu do chão levantando a almofada acima de sua cabeça e imediatamente todos os presentes cederam sobre os joelhos, com os olhos presos no chão.

– “Sou a labareda que devora o sol. Sou o fogo que consome os deuses. Sou a sabedoria dos que já se foram.” – A voz de Brathus era apenas um sussurro entre o barulho das ondas e o crepitar das fogueiras, mas Athorius duvidou que alguém tivesse deixado de ouvi-lo. Haena se levantou e todos levantaram a cabeça para olhar enquanto Brathus se inclinava para receber a coroa. – “Rei entre reis. Deus entre deuses. Sou as chamas da vida eterna.

Athorius não podia acreditar no que estava acontecendo. Não se lembrava de ver as mãos de sua mãe tremer para nada. Aquelas mãos haviam cortado o braço destroçado de seu marido como se partissem pão. Haviam arrancado Ithan da barriga de sua falecida esposa, como se capturassem um peixe arisco. Haviam desmembrado cabeças, arrebentado crânios, empurrado homens para a frente de batalha e para a morte certa, com a mesma certeza que escondiam um bocejo, mas agora Haena hesitava. E 25 mil almas tremiam com ela. Athorius esperava pelos versos finais.

A Coroa de Chamas se equilibrou na cabeça de Brathus enquanto ele voltava a ficar ereto e sorria. Um súbito alivio percorreu os presentes, lágrimas escorriam do rosto dos refugiados. Rei entre reis!

– “Quem governar através de mim…” – Athorius nunca soube se aquelas palavras realmente haviam sido ditas, ou se sua mente lhe pregava uma peça. As pessoas gritavam ao seu redor. Passos se espalhavam pela areia, enquanto crianças gritavam por seus pais.

Ele olhou ao redor procurando por Ithan, enquanto se protegia da multidão em pânico. Pelos antigos! Ele tentou gritar. E quando olhou para a fogueira, onde haviam estado Haena e Brathus, viu uma labareda azul, na forma humana, que gritava coisas sem sentido.

Todas as fogueiras pareceram explodir ao mesmo tempo e então, tudo se tornou silêncio.

– “Quem governar através de mim, terá um império de mil anos, se não for consumido pelas próprias chamas.”

•••

Este foi o primeiro tratamento que dei ao Conto Coroa de Chamas. Contar a história da fundação do Império não foi uma tarefa fácil. Haviam vários conceitos envolvendo o passado dos Allarini e seus inimigos jurados, os garu, que no fim a história ficou se parecendo com uma enorme explanação teórica. Achei chato. Mesmo assim, mantive uma parte do conto online, apenas por curiosidade. A versão final do conto, acabaria tendo um roteiro muito mais simples, não porquê eu tivesse mudado de idéia, mas porquê o roteiro deste conto serviria muito melhor para o roteiro de um romance do que de uma história curta. Os detalhes que eu não pude acrescentar a essa história poderão surgir futuramente em outro conto, mas falaremos sobre isso outra hora. (N.d.A.)

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